domingo, outubro 24, 2004

Algo mais, por favor.

"Online", podem encontrar a petição em defesa da preservação da casa de Garrett. O endereço é:

http://www.petitiononline.com/casaag/petition.html

Esta e outras iniciativas dirigidas aos poderes são úteis mas não chegam.
como poderemos dar uma habitação a entes cuja presença se manifesta como ressonância e não como voz civil?
Toda a nossa vida decorre no esquecimento, que não pode ser elidido. É o esquecimento que aguarda esta iniciativa se ela não for capaz de trabalhar também no plano daquilo que Bachelard designou como uma ontologia directa. Esta, que não pode ser programada, pode ser encontrada em imagens e vozes. Mesmo sabendo que a elas só respondem plenamente os elementos e o espírito, o seu eco perdura quando as levamos connosco numa acção cívica desta natureza.
Vamos à Rua Saraiva de Carvalho, sós, em pequenos grupos. Lendo um texto de Garrett, um poema, escutando essa casa, agora vazia e arruinada, para que um dia ela seja uma casa vazia mas presente.
A nossa cidade, todos o dizem, está vazia. Mas não são apenas os cidadãos que lhe faltam. Há um vazio, eminentemente urbanístico e estéril, que abunda em Lisboa. Mas escasseiam os espaços cujo vazio sensível determina a geografia secreta de certas cidades.

Olha bem estes sítios queridos,
Vê-os bem neste olhar derradeiro...
Ai! o negro dos montes erguidos,
Ai! o verde do triste pinheiro!
Que saudades que deles teremos...
Que saudade! ai, amor, que saudade!
Pois não sentes, neste ar que bebemos,
No acre cheiro da agreste ramagem,
Estar-se alma a tragar liberdade
E a crescer de inocência e vigor!
(...)
Garrett, "Estes Sítios" in Folhas Caídas, 2ª edição - 1853.

Amar as casas do tempo

Em Portugal, o tempo nunca chega a habitar as casas. Ventos, esquecimento, o habitar pobre, na alma e na pedra, tudo isso faz das nossas casas lugares precocemente tristes onde a ausência nunca pode ser evocada.
As casas, e antes do mais a sua poética, não pertencem inteiramente a quem as habita. Também aquele que passa pelo seu exterior pode nelas instalar um olhar, uma memória, uma citação. Faz-se, assim, um espaço interior que não estava inteiramente lá, mas que se distribui enigmaticamente pelos quartos e nos convida a sentar em reflexão ou a deitar num repouso mais activo e mais livre.
As casas que são memorial não se oferecem apenas à figura que a cultura nos legou. Abrigam-nos também quando aí acorremos em busca do ser da nossa intimidade. Não queremos, portanto, fazer delas espaços públicos. Toda a habitação preserva rumores e imagens. A casa-memorial fá-los circular para além do tempo, transformando-se em verdadeira morada do amor. Lugar essencial, topofilia.

Mas os poderes públicos devem proteger essa intimidade, não ocupá-la nem destruí-la ou ser-lhe indiferente. Devem, sobretudo, impedir que aqueles que não sonham esvaziem o lugar onde essas casas se erguem. A casa de Almeida Garrett, na Rua Saraiva de Carvalho, está habitada por formas oníricas que a palavra do escritor aí deixou à nossa espera. Essa casa já não é a morada do cidadão João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett. É antes uma casa que nos espera porque um dia nela começou a viver uma memória solitária. Essa memória é a verdadeira intimidade da cultura.
A casa onde Garrett morou deve abrir-se às nossas memórias. Que nela não se instale a Câmara Municipal ou o Estado, que apenas devem proteger a porta que lhe dá acesso. E que não nos interroguem sobre o que lá vamos fazer. Essas perguntas já nos são colocadas pela casa desde há muito tempo.