«Testemunho do estético» é um espaço dedicado às categorias estéticas da vida ou, como diria Valéry, àquilo que "se destaca da desordem comum do conjunto das coisas sensíveis". Visa, sobretudo, dar testemunho daquilo que está em movimento de de-formação, provocando um sobressalto simultaneamente íntimo e público. O valor estético, que toca igualmente o sensível e o secreto, convida a um outro modo de presença cívica.
terça-feira, fevereiro 02, 2010
O Amor romântico 2
Há uma imagem do amor que entrou na cultura massificada do nosso tempo, o que, como todos sabemos, foi feito transportando consigo alguns elementos da cultura romântica. Nesse processo, a experiência do amor viu quase desaparecer sua criatividade íntima, favorecendo uma hipertrofia dos processos de identificação amorosa. O amante pós-romântico alimenta-se de certos elementos do Romantismo na medida em que estes tenham sido absorvidos pelo romance, no século XIX, e pelo cinema, no século XX.
Contudo, o amor romântico tem, no seu centro, a dissolução da experiência previsível do amor. O amor romântico eleva o reconhecimento do ser amado, não a um estado de disponibilidade mais ou menos contrariada, como nos universos romanescos pós-românticos, mas a uma obscuridade irredutível que obriga a caminhar no amor de braços estendidos e coração acelerado. Neste amor, os riscos dos rasgões provocados pelas arestas das paredes, das contusões provocadas pelo mobiliário do espaço existencial, não aparecem como obstáculos, mas constituem-se como uma espécie de treino ferino e tacteante na busca da respiração do outro. Nessa viagem cega não procuro um objecto, mas antecipo dois braços que me amparam no instante em que vou cair na escuridão. À amada que me espera, «vejo-a» numa imagem acústica, uma imagem que, precisamente por essa condição, me vem à consciência através de uma sexualidade profundamente revirada do avesso e obscurecida. Que obriga à posse tacteante dos espaços interiores do corpo, como se andassem, nesse desespero do desejo, lugares ainda remotos onde uma linguagem pudesse voltar a articular-se, macerada, cheirando a frutos alcoolizados, feita de palavras absolutamente singulares e deglutidas. O amor romântico é mais densamente erótico que toda a representação clarificadora. Nada quer clarificar, já que a sua grande claridade foi encontrada numa vida imemorial de que ele é a viagem incógnita.
A amante e o amante dirigem-se um ao outro, não porque uma qualquer imagem os guie, mas apenas porque um processo de reconhecimento ganha uma densidade atmosférica que os atrai. Se algo é reconhecível neste amor, será uma identificação do ar, de uma respiração e da sua condensação. Aqui, o amor é aquilo que dissolve a selecção de traços que cada um possa fazer do ser amado: amo-te na medida em que, perdendo-me dessa expectativa que o meio designa como amor, posso adquirir uma inteligibilidade que já não é prévia a ti, mas que te acompanha na tua epifania. Entre nós, um corpo move-se que não é o teu nem o meu. Nesse corpo desconhecido deixo tombarem aquelas coisas de mim que sobreviverão a este estado apartado de ti. Deixo que vão, na pura esperança que também tu te cindas neste mesmo momento. Na esperança des-esperada que também os teus braços se tenham lançado nesse corpo ainda obscuro em que me lanço.
Se algo faltou à teoria românica do amor foi essa definição do que seja um corpo como pura materialidade sonora. Ao amar-te nesse corpo obscuro a que vens, é a anarquia das sensações que se apossa de mim, que me liberta de qualquer campo de previsibilidade, para me entregar à situação onde o desejo se liberta de todo o repouso que não seja sono comum.
segunda-feira, fevereiro 01, 2010
O Amor romântico
No próximo número da NADA, a sair ainda este mês, publico uma entrevista com Olivier Schefer, cujo trabalho, em torno do Romantismo alemão e de Novalis em particular, marca uma renovação na nossa ideia do período romântico. De tantos lugares comuns, empobrecimentos e simplificações, o do amor romântico é provavelmente aquele que mais se vulgarizou. Não falámos, aí, dele. Excepto naquilo que dele diz a relação (a leitura) de Novalis e Sophie von Kuhn, tão paradigmática, tão mal compreendida.
Do amor romântico podemos, contudo, vislumbrar elementos vivos, elementos abertos nas nossas próprias vidas, que não são epocais, que não se escrevem num género, mas que têm, certamente, uma língua. Saber que língua é essa é já penetrar o segredo do amor romântico. Mais do que isso, é estar dentro do acontecimento amoroso como uma língua, que é, aí, o que define o amor. Que língua é esta, tão espartilhada entre corpo e espírito, entre o que passa e o que fica? Será, precisamente, uma fugacidade que fica. Será um nada que se faz tudo. Uma sombra que acede à totalidade.
O amor romântico conduz o idealismo ao paradoxo, conduz-nos a uma reversibilidade das asserções que é, no fim de contas, a reversibilidade do corpo amoroso. A esta conduzem processos de significação e de obscurecimento que são todo o oposto da clarificação que a cultura amorosa moderna veio estabelecer. O corpo amoroso romântico não se clarifica, não se define, precisamente porque nele há uma linguagem que continua sempre para além do desligamento dos corpos. O amor romântico será, então, essa língua que desterritorializa os corpos, ao mesmo tempo que corporifica os traços do desejo; que produz um corpo andante, um quase duplo dos amantes. Ao amor andante os corpos vêm juntar-se, o que significa que o amor romântico vive na elaboração e na cultura de um fantasma, num sentido decididamente não-freudiano. O fantasma é, nesta acepção, aquele que permite aos amantes o amplexo amoroso em toda e qualquer circunstância.
O fantasma é, aqui, um ser mais livre do que um espírito preso num corpo individual. É um ser que faz vibrar o espaço entre os amantes, que se distende no afastamento destes, para logo se contrair e densificar na aproximação deles. Através dele, o amor define-se como irradiação infinita dos corpos que se amam. Não é tanto a presença ou a ausência que define a relação amorosa com o outro, mas o facto dessa presença nunca deixar de projectar um horizonte de ausência, ao mesmo tempo que a ausência nunca deixa de ser uma experiência da presença. A experiência da Beleza determina, não uma geografia do coração, mas uma química, uma liquefacção que alastra. Daí que Keats tenha podido escrever a Fanny Brawne, em carta de 8 de Julho de 1819: «Indeed I am almost astonished that any absent one should have that luxurious power over my senses which I feel. Even when I am not thinking of you I receive your influence and a tenderer nature steeling upon me. All my thoughts, my unhappiest days and nights have I find not at all cured me of my love of Beauty, but made it so intense that I am miserable that you are not with me».
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