quarta-feira, agosto 12, 2015

Véra Saudková, sobrinha de Kafka

Morreu Véra Saudková. O nome poderá não evocar nenhuma referência, mas os kafkianos saberão que era a última parente próxima de Kafka, neste caso, sua sobrinha. Filha de Ottla, a irmã mais querida. Ah! Ottla! Exclamarão os leitores apaixonados de Kafka. Sim, a Ottla que acolheu o irmão durante os oito meses passados em Zürau, esses magníficos e tristes meses em que Kafka escreverá em folhas soltas os chamados «Aforismos de Zürau», cento e três folhas de papel frágil, mais precisamente. Estas, numeradas pelo punho do escritor, eram escritas a par do seu trabalho nos «cadernos in-octavo», nos quais alguns dos «aforismos» foram transcritos.

Ler os «aforismos» é uma tarefa infinita, como já tentei exprimir noutro lugar. Mas há igualmente a correspondência com Ottla, tão distinta daquelas mantidas com Milena ou com Felice. Cartas comoventes que revelam um Kafka que se interessa vivamente pela existência material no pequeno domínio agrícola que a irmã administrava. Como disse André Manssel, nada do que pertence à existência é mesquinho, desinteressante ou secundário em Kafka. A mais humilde das inquietações ganha nessas linhas uma força e uma evidência que só à verdade pertencem. Tenho, aliás, a intuição de que Kafka renova a literatura do século XX, não pelo retrato do totalitarismo, mas antes pela libertação de uma força de verdade no mínimo dos gestos quotidianos.

Véra Saudková foi entrevistada, como tantos outros sobreviventes do Holocausto, pela Shoah Foundation. Chamo a atenção para o último minuto deste excerto, um momento onde a ternura se funda numa tristeza infinita. Véra evoca o momento em que, já durante a guerra, as irmãs de Kafka recebem os primeiros direitos de autor que haviam herdado e que lhes eram devidos pelo início das edições internacionais da obra do irmão. E recorda: «Juntas, com as lágrimas nos olhos, exclamaram: "Então, o nosso Franz era um escritor!". E foram [levadas] para o transporte». Literal ou simbolicamente, este seria o último transporte, aquele que as levaria a Theresienstadt e, logo depois, a Auschwitz.

http://sfi.usc.edu/content/v%C4%9Bra-saudkov%C3%A1-her-uncle-franz-kafka-0

sexta-feira, julho 03, 2015

A inteligência biográfica





(Recensão de Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Guimarães, Lisboa, 2012. Publicada em As Artes entre as Letras, números 148 e 149, Junho de 2015)



1.
Os textos biográficos – particularmente aqueles dedicados a homens e mulheres que escreveram – são salomónicos: desembocam sempre na inevitável repartição dos materiais entre os gestos próprios do escrito e os gestos indecidíveis de uma existência. O biógrafo tem, então, duas opções: ou oculta sistematicamente o problema que essa decisão de vida ou morte lhe coloca, a fim de poder construir uma tese sobre certa vida, ou decide expô-lo, indecidível como ele é, no seu próprio texto. Neste último caso – que é aquele de Agustina enquanto biógrafa – o problema do biógrafo acompanha, linha a linha, página a página, o problema do biografado. E já não pode haver aí biografia bem comportada, cronológica e apaziguadora. Há só epístolas que não se pôde enviar, mas que acabam por vir a uma luz que não procuraram, como sucede com esta Agustina Kafkiana. Dá-se então um jogo de aproximações e recuos, denso e doloroso, entre o dilema próprio do biógrafo, escritor que se exprime na resiliência da vida, e o dilema desse outro escritor que está já morto, decerto, mas morto na misteriosa imperfeição da morte que é a literatura. É pela literatura que este oculta a vida no texto que estende ao primeiro.
Agustina foi habituada pelo gesto narrativo a colocar-se diante de personagens que falham sistematicamente a tentativa de se ocultarem. No texto biográfico, essa ocultação recorre à morte como artimanha derradeira. O biografado veste-se aí de morte, da morte que inscrevera na literatura, e tudo o que consegue é revelar uma vida silente. Não é Agustina que retira as suas personagens à morte e lhes vem dar a vida póstuma: são elas que se enlaçam nessa narração perpassada por um cepticismo sobre a possibilidade biográfica, quer dizer, sobre a vida após a morte. Se verificarmos com atenção, veremos que esse cepticismo se refere sobretudo à construção de um texto que esclareça uma vida, nunca à continuidade entre vida escrita e vida sonhada, que constitui a única matéria propriamente viva da escrita de Agustina. Assim, a recusa da vida biografada em revelar-se ilumina a própria agitação do que se esforça por se ocultar e que não é mais do que a própria vida:
«Usando uma expressão do próprio Kafka, todos nós somos um ninho de ratos povoado de pensamentos reservados. E quando se trata de examinar e medir o Bem, ou quando se trata de examinar o mais ínfimo dos nossos actos, recuamos para aquém dos nossos pensamentos reservados. Porque a lama estende-se pelos terrenos mais profundos, e não a lava ou o húmus vivificador.[1]»
Diante de Kafka, a escrita viva de Agustina depara com as particularidades do exposto kafkiano. Se, neste, tudo parece constituir, paradoxalmente, um «caso subterrâneo», tal sucede porque, tal como acontece à toupeira, «a reflexão não o embeleza, mas permite-lhe esperar que a aparência se transformará em natureza e que o macio pêlo da toupeira será um dia a doce face da sua alma»[2]. Tudo em Kafka se expõe, mas aí onde a exposição não é esperada: na vida reservada, na espera e no risco. Essa exposição é perturbadora e releva da inteligência, ao contrário do tipo de exposição que vemos hoje nos media, fruto da cobardia inscrita na complacência. No texto «Um presépio aberto», Agustina fala-nos de um Kafka «educador». Essa é uma das passagens deste livro em que dois tipos de escritores inteligentes – Kafka e Agustina – se reconhecem mutuamente. Lemos aí a mais alta forma de biografia concentrada na seguinte frase: «A inteligência é, para Kafka, uma maneira de ser poupado por essa terrível força que sacode e destrói tudo quanto é vivo»[3]. Agustina, a escritora, que tantos enredos desdobrou a partir do domesticado e do indomesticável, depara-se, fascinada, com esta inteligência que não aparece como luz, mas antes «como um véu prodigioso»[4].
Os textos que Agustina Bessa-Luís dedica a Kafka pertencem a uma família singular, um tipo de ensaios só possível de gerar na amizade. A amizade literária, tão mais rara do que a inimizade, é aquela desprovida de toda a complacência. No que se refere a Kafka, essa é ainda a grande tradição quando queremos conhecer o que foi escrito sobre o autor de Metamorfose. É uma tradição inaugurada por Max Brod, o amigo tão elogiado enquanto socorrista dos manuscritos quanto criticado no seu papel de editor destes, e continuada por Gustav Janouch, a criança que encontra Kafka sem nunca vir a ser tomada, em toda a sua vida, pela impaciência da mendiga de Praga evocada por Agustina. Ser amigo de Kafka era, ao que parece, uma fonte de alegrias espirituais mas também daquelas banalmente quotidianas. Nestes textos, podemos verificar que Agustina conhece bem a alegria subtilmente dolorosa da amizade de Kafka, embora este tenha desaparecido pouco depois do seu nascimento. Os amigos em literatura foram aqueles que antecederam as classes profissionais que viriam a substituí-los progressivamente a partir do séc. XIX: os escritores profissionais (que nem Agustina nem Kafka são), os críticos, os professores de literatura, enfim, os diversos grupos de especialistas. Poucos destes são fiáveis na amizade. É por isso que a homenagem que Agustina faz a Kafka rejeita incisivamente toda a apropriação dessa amizade:
«Em geral, só os literatos se interessam por Kafka e o divulgam para honra das Letras. Mas um homem como Kafka corresponde à honra da humanidade no seu sentido de valor total, que protege e codifica as leis tanto da sobrevivência como da supervivência.»[5]
Só a amizade oferece a ocasião de escrever tão profundamente sobre o ofício literário que ambos partilham e sobre a sua estranheza. É certo, contudo, que os processos pelos quais Kafka e Agustina confrontaram essa estranheza são diametralmente opostos. Em Kafka, o resultado textual desse ofício aspira ao desaparecimento. Só uma conivência inconfessável preservará muitos dos textos dispersos. Em Agustina, toda a escrita parece já formada quando vem à luz do dia, destinada a ficar na luz solar, embora ocultando a sua longa raiz. Por isso mesmo, é Kafka tão importante para Agustina. Em tudo diferentes, mas irmanados numa característica comum: nunca a literatura tende neles para o trágico, já que a tragédia é um luxo que deixam aos povos dominantes e às castas que se afirmam na História.

2.
Há duas ou três formas inteligentes de escrever sobre Kafka. Mas a inteligência de Kafka não reside apenas na escrita, caso em que a inteligência biográfica seria apenas um encontro acidental. A grande recriação de Kafka como escritor «inteligente», ou seja, como hipertrofia do escritor, encontramo-la em Blanchot. Numa primeira abordagem, parece existir entre este e Agustina uma improvável comunidade kafkiana. Aliás, os anos dos textos que Blanchot dedicou a Kafka estendem-se por vinte e cinco, um número não distante dos vinte e dois anos de missivas que aqui lhe dirige Agustina[6]. Agustina, sabemo-lo, é uma escritora em quem a inteligência é o dom de uma natureza (mas não a «sua natureza») que vem pelo escrito, ou seja, uma natureza que só existe plenamente pela afirmação. Ao invés, Kafka combate os dons que a escrita lhe revela, coloca-os à prova, já que a literatura é para ele «um sucesso da solidão». Como escreve Blanchot, pensando em Kafka, «a literatura, ao fazer-se impotência em revelar, quereria tornar-se revelação daquilo que a revelação destrói»[7]. Mas Blanchot engana-se quando logo acrescenta que esse é «um esforço trágico». É antes um esforço cómico, o que não lhe retira a sua profunda verdade. Com efeito, os esforços de Kafka nunca incidem naquilo que esperaríamos e são sempre surpreendentes. São, aliás, uma das dimensões fundamentais do humor kafkiano, que Agustina tão bem capta numa passagem magistral:
«Não se trata de um escritor intimista; desagrada-lhe a ideia de ser tratado como tal. O seu sofrimento é feérico, irreal, explode no escuro como uma batalha de luzes, de clarões. Parece uma forma de rir. É uma forma de rir.»[8]
É impressionante, por isso mesmo, o conflito de sentimentos de Kafka perante a possibilidade de vir a ser um autor publicado: terror, desejo – «avidez», diz ele –, repugnância de si. Se nos pusermos a mesma questão relativamente a Agustina, apenas conseguiremos evocar a segurança, a ambição, a serenidade da escritora. Se Kafka foi, até ao fim, a impossibilidade de ser escritor, Agustina terá sido sempre a certeza de ser escritora. Pelo menos assim nos aparecem estas duas improváveis vidas paralelas.
Há, contudo, um segredo paralelo nestes dois nomes tão dissemelhantes no género, no carácter e na oficina. Coloquemo-nos a questão do autor que lê um outro escritor como se este fosse um seu modo secreto de ser: não apenas um par, mas a própria encarnação de uma persona literária que o autor-leitor reconhece na sua sombra interior. É certo que Agustina leu recorrentemente Kafka desde que o descobriu. Era aí movida pela curiosidade e não pela escola buissonnière que tantos autores lidos lhe terão dado. Nunca Kafka seria um mestre para ela. Ele é outra coisa. Maior ainda, mas por isso tanto mais inquietante, já que nele a consciência do escritor é uma sensibilidade incomportável perante a vida. Lendo-o, Agustina foi reconhecendo a vida habitada por um segredo indizível que tantas das suas personagens já manifestavam em comportamento e em carácter. Na leitura, ela, com a curiosidade daquele que tem a absoluta necessidade de um conhecimento ameaçador, foi espreitando uma habitação que nunca poderia vir a ocupar ou a sentir como sua; uma arquitectura fascinante e inquietante por cuja janela espreitou durante anos e anos, até sentir que lhe conhecia os quartos e as divisões nunca pisadas. Via aí Kafka, e imaginava que escritora seria ela própria no seu lugar. Todos os textos de kafkiana são essa tentação de menina que espreita à janela e adivinha as silhuetas de uma vida literária que não é a sua.
Também nós podemos perguntar: que escritora seria Agustina se a publicação fosse para ela essa repugnante tentação? Se a escrita fosse nela esse tecer obscuro do texto, sempre incapaz de ser resolvido, mas sempre já completado nalgum plano desconhecido? Na impossibilidade de afirmarmos que seria uma outra Agustina, a escritora, ela seria aquela que experimentaria certamente uma outra vida perante a escrita. Desde logo, Agustina capta em Kafka, sem pretender refazê-la, essa experiência radical da escrita como vida interior. Nada de esotérico há aí: apenas uma densidade gravitacional que quase impede o corpo de caminhar direito. O Kafka alto que parecia nunca estirar os seus longos membros é o espírito da aranha na literatura do século XX. Uma forma superior da paciência.

Jorge Leandro Rosa



[1] Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Lisboa, Guimarães, 2012, p. 46.
[2] Id., ibid., p. 21.
[3] Id., ibid., p. 50.
[4] Id., ibid., p. 50.
[5] Id., ibid., p. 44.
[6] Se os textos que constituem De Kafka à Kafka vão de 1943 a 1968, Agustina dedica textos a Kafka (pelo menos os incluídos nesta recolha) no período compreendido entre 1983 e 2005.
[7] Maurice Blanchot, De Kafka à Kafka, Paris, Gallimard, 1981, p. 43.
[8] Agustina, op. cit., p. 26.

segunda-feira, abril 20, 2015

A fotografia do filósofo



Tenho no meu escritório (ou nos escritórios que se vão sucedendo) uma fotografia de Jankélévitch. Isso não significa que se trate do «meu» filósofo, daquele que mais me alimentou, no que se refere aos trabalhos do pensamento. Mas é, pensando bem, o filósofo que anda comigo e que penduro sempre junto das estantes da biblioteca. Há uma analogia espacial que o explica: nessa fotografia, inserida num cartaz da Seuil, um dos seus editores, Jankélévitch está em casa, apoiado numa estante da biblioteca, e examina um volume. Não consigo nela perceber qual o livro que ele segura nas suas (grandes) mãos. Ao fundo da estante, no ponto de fuga da imagem, vemos o retrato de Liszt. Como não encontro uma versão digital dessa fotografia, publico uma outra, belíssima, que descobri há pouco tempo. Devo dizer que Jankélévitch terá sido, certamente, um pensador fotogénico: a sua longa franja de cabelo branco dava uma nota de irreverência e de imagem cultivada a esse rosto grave e talhado na reflexão. Esta fotografia de Vladimir Jankélévitch dá-o a ver, é a minha impressão, na velha Sorbonne, onde durante décadas foi professor de filosofia moral. Num texto evocativo, Clément Rosset escreve: «Aquilo que antes do mais recordo, quando evoco as minhas lembranças de Jankélévitch, é uma prodigiosa faculdade de inatenção». E logo acrescentava que a inatenção é «uma atenção sempre ocupada alhures».

Admirei a figura de Vladimir Jankélévitch ainda antes de começar a lê-lo. Levei tempo para começar a ler Jankélévitch: dele, eu já sabia algumas coisas e a sua obra era uma promessa de deleite guardada para mais tarde. Era eu ainda um adolescente quando ouvi, no acaso da conversação, Nataniel Costa evocar esse título mágico e evocador de um dos seus livros: «Le je-ne-sais-quoi et le presque rien» (Paris, Seuil, 3 volumes). Um título complexo e, contudo, imediatamente compreensível! Toda uma arte difícil, subtil e onde o pensamento emerge do labor musical da linguagem.

Jankélévitch é um filósofo moderno a quem nunca faltou a prática retórica e estilística herdada da grande tradição filosófica francesa, de um lado, e da literatura e sensibilidade russas, do outro. Sem nunca ter sido, contudo, um desses filósofos místicos, como o eram tantos autores russos, por vezes admiráveis, que chegavam à França do entre-guerras. Aliás, o seu pai, S. Jankélévitch, foi tradutor para o francês de Berdiaeff e (se não estou em erro) de Chestov.

Não sei se ainda há leitores para esta filosofia: faltam-nos muitas das coisas que habitavam então o ambiente cultural e que favoreciam a sua compreensão. Não falo de uma simples «cultura geral», mas antes de um sábio «à-vontade» cultural, de uma certa desfaçatez na mistura subtil da erudição extrema e da provocação aos hábitos de pensamento.

A obra de Jankélévitch tem dois grandes esteios, que nele estão ligados como o estão os dois hemisférios do cérebro: a obra propriamente filosófica, se assim quisermos, e a obra sobre a música, quase tão extensa quanto a primeira e seu alimento íntimo e fundo. Nesta contam-se livros preciosos como «La Musique et l'ineffable», «La Musique et les heures», «La Présence lointaine», assim como monografias dedicadas a Liszt, Fauré, Ravel, Debussy, Albéniz, Mompou, etc. Estaremos diante de todo um programa musical? Foi muitas vezes sublinhado que Jankélévitch quase nunca escreveu sobre os grandes compositores da tradição romântica alemã, tal como se recusou, a partir de certo momento, a escrever sobre os filósofos de língua alemã. Uma dupla desfaçatez, evidentemente, estranha a qualquer nacionalismo, neste autor francês descendente de judeus russos e que passou à clandestinidade durante a ocupação. Mas trata-se de um certo programa musical para a Filosofia que nunca deixa de ser uma filosofia provinda da música e só na música formulável.

quinta-feira, abril 16, 2015

A arte com carnes e o cozinhado do humano

Em Malmö, no Malmö Konsthall, dois mendigos romenos foram exibidos numa galeria de arte. Suponho que sejam dois seres humanos; suponho também que sejam um homem e uma mulher (Livro do Genesis «oblige») cujas biografias inscrevem, efectivamente, a mendicidade e a condição étnica «rom» ou cigana; suponho ainda que para esta mulher e este homem a exposição a que são submetidos na galeria de arte não seja substancialmente diferente daquela que viveram nas ruas das cidades da Europa. Para serem exibidos (aqui sem «»s) são necessárias as seguintes condições: estarem vivos (mas se algum viesse a morrer subitamente, pôr-se-ia a questão do interesse artístico da morte súbita); subsistirem, antes e depois da exposição, através da actividade que replicam na galeria (há sempre uma mimese nesta «verdade», aqui com contornos paródicos involuntários); não serem demasiado inconvenientes para o público nem para os espaços higiénicos dedicados à arte (aquele branco e aquela zona de circulação devem permanecer virginais).

O subtítulo do artigo do «Babelia», um suplemento cultural e literário que ainda sobrevive com dignidade na imprensa europeia, é interessante: «Tudo, do mais sagrado ao mais profano, se converteu em carne de museu». É interessante mas, provavelmente, equívoco e falho. Porque, na minha perpectiva, a condição da arte contemporânea é um assunto essencialmente arrumado. À arte falta a sensibilidade para o processo da sua própria morte. Ou seja, para a sua corrupção. Embora a morte da arte ande por aqui há dois séculos, e muitos artistas o tenham compreendido, há uma obstinação de cadáver que parece percorrer muitas das instituições artísticas e dos seus agentes.
Já escrevi, noutro lugar, sobre esse artista sueco, simultaneamente exemplar e menoríssimo, que dá pelo nome de Carl Hausswolff. Um oportunista, evidentemente, que teve a brilhante ideia de incorporar cinzas humanas provenientes dos fornos crematórios do campo de Majdanek nas suas pinturas. Mas o oportunismo de Hausswolff é o oportunismo do sistema artístico, incluindo os chamados «especialistas», sejam críticos ou artistas. A propósito da proibição da exibição de alguns quadros seus, estes tiveram a oportunidade de repetir as suas considerações sobre a posição exemplar (de quê e o que é o exemplar em arte?) de Duchamp e a admissão de «objectos» heteróclitos na galeria.

Na verdade, a «denúncia» política e ética efectuada pela arte confunde-se cada vez mais com a leviandade semiológica das populações do mundo globalizado. É cada vez mais um ritual de morte em nome da vida (daí o que há de questionável nesta noção da «carne de museu», corrupção expedita do conceito de carne em Michel Henry). Confunde-se com o fabrico de significação e com a práxis publicitários que tomaram conta das artes, em particular das artes plásticas.
Se a condição da arte contemporânea me parece um assunto arrumado, entregue ao «business as usual», a condição humana não anda longe de vir a estar também arrumada. Talvez no mesmo espaço de armazenamento e reciclagem: uma qualquer galeria de arte próxima de si. Será esse o verdadeiro sentido da «morte da arte» tematizada por Hegel?

terça-feira, março 03, 2015

Bachelard e a poética da vida material




É uma entrevista realizada dez meses antes da morte de Bachelard. Entrevista televisiva conduzida sem inteligência mas com o fascínio inevitável perante a figura de Bachelard, o sábio que soube habitar essas duas margens hoje tão distanciadas: a da cultura científica e a da vida poética e filosófica. Já deviam parecer intransponíveis para os espectadores que observavam esta figura em 1961: tudo em Bachelard reconduz aos arcanos da imaginação. Mas viver pela imaginação é, precisamente, viver na escala da vida de todos os dias. «Nem sempre é muito cómodo ser-se igual a si mesmo» diz Bachelard quando lhe perguntam o que faz um filósofo. Mas à questão sobre a sua vida quotidiana de filósofo, esse «sonhador», ele responde: «Nunca me vi atrapalhado pela vida material. Sei fazer tudo, não preciso de ninguém. Sei cozinhar. Sou auto-suficiente. E retorque subitamente, perguntando ao entrevistador: «E você ocupa-se da sua vida material?» Talvez, mas certamente muito menos do que o filósofo.

Bachelard vive, quando está em Paris, num minúsculo apartamento pejado de livros e manuscritos. Ora o problema da casa reparte-se por vários dos seus livros, principalmente La Terre et les rêveries du repos e, sobretudo, La Poétique de l'espace. Será esse apartamento infiel ao que ele pensou sobre a verdadeira casa? Sim, certamente que o é. Não, contudo, por causa da sua dimensão ou daquilo que hoje se diz ser a qualidade necessária da «construção civil», os materiais nobres ou os acabamentos. Não. Aquilo que lhe falta neste apartamento é a verticalidade. «É necessário que hajam uma cave e um sótão. Uma cave verdadeira, não uma cave civilizada». Vejamos a passagem em causa da Poétique: «A verticalidade é assegurada pela polaridade da cave e do sótão. As marcas desta polaridade são tão profundas que elas abrem, de algum modo, dois eixos muito diferentes para uma fenomenologia da imaginação. Com efeito, quase sem comentário, pode-se opor a racionalidade do telhado à irracionalidade da cave». Mas é no livro sobre os «devaneios do repouso» que a formulação é a mais feliz e bela: «De resto, colocando-nos dentro do mero ponto de vista da vida que sobe e desce em nós, percebemos bem que 'viver num andar' é viver bloqueado. Uma casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem cave é uma morada sem arquétipos».

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

No aniversário do suicídio de Zweig, hoje visitado por Roth

Stefan Zweig é o último escritor do entre-guerras a acreditar numa Europa capaz de encontrar a salvação na cultura. Essa crença iluminava, enlevava e enganava os seus leitores. Não há recepção na literatura europeia do século XX mais complexa do que esta. O Mundo de ontem. Memórias de um europeu, terminado já em 1941, meses antes do suicídio no exílio, distingue-se das memórias de outros escritores de língua alemã pela capacidade de reunir a alegria e o entusiasmo ao exercício nostálgico. Mas no próprio objecto desse entusiasmo aparecem os sinais da noite que cai sobre a Europa. Se alguém escutar aí um som de queda ou de fechamento semelhante àquele que ouvimos hoje não o desmentirei.

O seu amigo Joseph Roth, também um judeu austríaco, é um caso ainda mais complexo, mas, se descontarmos o entusiasmo cosmopolita de Zweig, a sua escrita está embebida na mesma complexa reunião de sentimento desesperado e de lucidez. Roth mata-se mais depressa (Paris, 1939) e sem ter procurado ilusórias terras «do futuro» no Brasil. Ou, então, essa promessa era parte do contrato de Zweig com os seus leitores em todo o mundo ( e muito amplamente em Portugal), o seu entusiasmo profissional, sempre em combate com a lucidez, demónio secreto para um judeu que sabia ler o mundo nos anos 30, embora a sua fraqueza pelas civilidades do império bicéfalo o iludisse quase até ao fim. Precisamos hoje de um autor judeu como ele (não o digo por uma questão étnica, mas por razão de uma herança difícil de definir e que estaria tentado a definir como metafísica). Talvez um Imre Kertész seja esse autor, mas a sua voz está demasiado abafada pelo estrondo mediático do nosso tempo. Felizes Zweig e Roth, felizes apesar de tudo, que puderam escrever num tempo em que só ainda havia o fragor das bombas e a morte silenciada nos campos. Hoje, o terrível fragor da sociedade da comunicação impede-nos de ouvir as nossas bombas e os nossos próprios silêncios de morte.

«A juventude do nosso tempo tinha a convicção de que algo de novo na arte ia acontecer, e que esta se tornaria mais apaixonada, mais profunda e mais complexa do que fora no tempo dos nossos pais. Contudo, fascinados apenas pelo que se passava nesse domínio da actividade humana, não notávamos que essas alterações estéticas apenas significavam o prelúdio de mais profundas e extensas modificações, perturbando, de início, a ordem em que os nossos pais viviam e, logo depois, destruindo o mundo e a sua época de segurança.» in O Mundo de Ontem, Porto: Civilização, p. 93.



quinta-feira, janeiro 22, 2015

Jacinta canta «In der finster»



Já aqui coloquei música do séc. XVIII para cravo (Couperin) e canto dhrupad do norte da Índia. São algumas das formas musicais, dos instrumentos e dos artistas que considero mais preciosos, preservando algo que é essencial à música e que hoje parece quase esquecido: um laço infinitamente ligeiro e perene entre a beleza e a espiritualidade. Faltava a referência à cultura e ao canto Yiddish, a língua falada pelos judeus da Europa Central, cuja cultura é quase erradicada no Holocausto. Ei-la pela voz de Jacinta, uma artista nascida na Argentina, filha de pais que fugiram às perseguições e aos pogroms.
Jacinta vive há muitos anos em França, onde tem divulgado, sempre com elegância e rara simplicidade, a tradição musical Yiddish. Esta nasceu nos ghettos, subtil mistura de nostalgia, alegria e dor. Nunca tendo sido uma cantora com grande êxito (para que precisaria ela do êxito, se tem a alma?), gravou diversos discos em yiddish, castelhano e francês. Dela conheço um, belíssimo: «Autres chansons Yiddish», Ocora, 1992.

Na obscuridade os teus olhos fazem-se mais belos
Na obscuridade as tuas mãos são mais frágeis
Na obscuridade, és mais terno, mais delicado...

domingo, janeiro 11, 2015

Dalibor mostra-nos o espelho

(Esta nota é o meu comentário a uma «reportagem» da TVI que pode ser vista em  http://www.tvi24.iol.pt/videos/sociedade/propostas-de-emprego-para-dalibor/54af22ba0cf2a5cdf1a0b4cd/1 )

Conheci Dalibor há muitos anos. Peço-lhe desculpa por o nomear assim, ele que merece os seus apelidos. Conheci-o episodicamente. Angustia-me a ambiguidade desta «reportagem» de uma estação «generalista» de televisão. A televisão que devora tudo o que capta. A televisão é como a cave de Hanta, a personagem imortal desenhada por Bohumil Hrabal em «Uma Solidão demasiado ruidosa», um checo como Dalibor. Mas nela não há ninguém que leia no meio da sujidade e da podridão. E isso vê-se e escuta-se, apesar da superficialidade e voracidade desta «peça», como também dizem.

Um «emprego» para Dalibor? Este homem não precisa de um emprego: é Portugal que deveria tratá-lo como um cidadão e alguém que nos honra, alguém que fala e lê melhor em português do que a grande maioria de nós! Por que razão um homem deverá ser medido pelo seu emprego? Naquela biblioteca de bairro, cujo espólio de livros não é particularmente rico (basta ver com atenção as estantes), Dalibor encontra um Portugal que já não é frequentado pelos portugueses. Dalibor vive num Portugal imaginário, que ainda ama os seus escritores, que ainda os discute, que ainda tem algum conhecimento do que é a vida da linguagem. O facto de Dalibor passar os seus dias a ler aparece como um toque de exotismo na banalizada «história por detrás do sem-abrigo». O sem-abrigo é uma «não-pessoa» e todas estas narrativas jornalísticas contêm sempre, no seu subtexto, a mesma concepção de  um ser humano que deixou de ter biografia e se tornou o fantasma da sua própria vida. Dalibor, o fantasma que lê. A leitura como actividade de fantasmas e a biblioteca como espaço fantasmagórico (hoje, cada vez mais repleto de dispositivos electrónicos, para muitos a única coisa que lhe dá vida). Se alguém viu o mais recente programa sobre livros e literatura na RTP2, o tal canal do serviço público, encontrou precisamente esta necessidade de espantar o que há de fantasmagórico nas páginas dos livros: o silêncio que aí envolve as palavras, a brancura da página, a imobilidade, a renúncia à imagem. Espantam-se os fantasmas e espanta-se a vida interior, que é aquela vida a que o leitor aspira e que lhe permite, noutro momento, regressar renovado à vida exterior.


Dalibor vem de uma cultura da Europa central, sobre a qual quase nada sabemos. Aliás, em Portugal, nunca se sabe nada sobre as culturas europeias que não aquelas das potências dominantes. Outros checos se apaixonaram pela cultura e pela língua portuguesas ao longo do último século. A vida dos checos não foi, ao longo do século XX, mais fácil do que a dos portugueses. E os falantes do checo são infinitamente menos do que aqueles que falam português. Mas isso não os impediu de amar as culturas dos outros, de querer compreendê-las, vivê-las por dentro, tentar saber o que é ser um homem em mais do que uma língua. Dalibor é o embaixador dessa Checoslováquia que, tendo os seus maiores autores e pensadores proibidos, os viu descer às suas caves onde continuaram a escrever, a pensar e a ensinar. Actividades que, realizadas hoje à luz do dia em Portugal, parecem dissolver-se imediatamente no ar.

«Uma manhã, os açougueiros trouxeram do talho um camião cheio de cartão e de papéis ensanguentados, caixas repletas do papel que eu não suportava porque tinha um cheiro adocicado e eu ficava todo cheio de sangue, como o avental de um talhante. Para me vingar, pus no primeiro pacote o Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdão, no segundo pacote depositei piamente Dom Carlos de Friedrich Schiller e, no terceiro pacote, para que o verbo também se transformasse em carne sangrenta, coloquei aberto Ecce Homo de Friedrich Nietzsche». HRABAL, Uma Solidão demasiado ruidosa, Afrontamento, Porto, 1992, p. 43.