quarta-feira, dezembro 30, 2009

O que acontece


Há mais de setenta dias que não publico no Testemunho. Poderia ter sido o próprio tempo a recusar um traço nesta página. Poderia ter sido a indiferença que o tempo esconde, a lenta procissão do esquecimento de si. Poderia, também, ter sido a pura mobilidade da inscrição a deslocar-se para outras paragens. Muito do que poderia ter sido parece adequar-se à ausência de inscrição, da mesma forma que vivemos segundo pequenas hesitações que nunca chegam inteiramente à consciência.

Mas há acontecimentos que procedem como se o mundo não pudesse deles guardar memória, obrigando o corpo a oferecer-se e a expor-se. Como se, aí, nada tivesse superfícies onde se detenha o que veio, razão pela qual o que vem continua a vir de encontro a nós, a subir por nós, a estreitar-nos e a morder-nos. Aquilo que vem forma, evidentemente, essa estranha simultaneidade do nascer e do morrer de que falava Jankélévitch. O que vem, precisamente porque abre um mundo onde toda a inscrição estremece nessa palpitação, se dilui e deixa ferida, desloca-nos para uma situação tomada pelo irreconhecível. Essa vinda tem um nome conhecido e abusado: o amor.

Se, imprevisivelmente, a vida atravessa este acontecimento, não podemos, ainda assim, dizer que ele é fenómeno pertencente à vida. O seu trabalho, a sua marca, revela a insuficiência da vida, a inutilidade de toda a previsão feita a partir dos pressupostos desta. E o que vem assim não se confunde com o que pressupúnhamos como adequado ao sentido. O que assim acontece vem intratável e mostra-nos a sua boca. Há que oferecer-se à mordedura, ao «horror e à maravilha», como dizia Pavese. Só lentamente a vida vai recuperando os seus direitos. Só a pouco e pouco voltamos a acreditar que há algo da vida capaz de inscrição.

O que é mais estranho é o facto do desejo de inscrição também se tornar urgente. Há que aproveitar para renovar toda a escrita: os pigmentos usados, a matéria sulcada pelos estiletes, a gramática comum. Esta nova inscrição deve ir ao fundo do corpo, deixando que a tinta alastre nos tecidos, liquefazendo as vozes, abrindo os ossos a novas configurações do abrigo. O que assim vem, e que não pode ter direcção porque não age no mundo, deve tomar um nome.

Só o teu nome define agora uma correspondência entre a linguagem e o acontecimento. Esse nome, que é voz carnal do som, que é o sopro cuja direcção desconheço, é o inventor do amor. De cada vez que te chamo, todo o meu ser se deixa tomar por uma língua que balbucia ainda.

segunda-feira, outubro 19, 2009

Imagens de camponeses


Recentemente, assisti na Cinemateca, e quase por acaso, a uma sessão singular que me deixou uma marca indelével: alguns filmes, realizados entre os anos 50 e a actualidade, por pessoas oriundas do campesinato da Padania.
É-me difícil descrever o impacto daquelas imagens, na sua maioria filmadas em Super 8, em condições muito precárias e escassíssimos meios. O mais recente deles, já realizado em 2008 com outros recursos, mas conservando o olhar «amador» deles todos, intitula-se Il Colore della Bassa, realizado, como todos eles, por Giuseppe Morandi e alguns dos seus companheiros. Encontrei dois deles na sessão da Cinemateca. Sabendo que a instituição não se dedica a este tipo de «marginalidade» cinematográfica, fiquei algo intrigado até que ouvi uma referência à Casa da Achada, o novo centro cultural ligado à Associação Mário Dionísio.
Tendo embora admirado a força de muitas das imagens, a sua crueza, a sua proximidade à experiência da terra, não posso deixar de referir o entusiasmo e a revolta expressa nas palavras de Morandi nessa ocasião: pude, então, relembrar algumas das questões que fundamentaram a minhas opções dos vinte anos: a insustentabilidade e o vazio das sociedades divorciadas do seu mundo camponês; a destruição da ciclicidade da experiência; a alienação pela técnica; a in-verdade das opções de vida do mundo ocidental, que transforma a ruralidade em no man's land; a destruição industrial do mundo animal e vegetal, aos quais são recusadas qualquer percepção da sua dignidade viva.
As imagens são aí de uma grande violência, mas também beleza, quase até à asfixia. Particularmente aquelas que retratam a industrialização da morte animal. Deixo aqui a minha saudação a Morandi e aos seus amigos: ver homens que foram camponeses e que, já não podendo sê-lo hoje, ainda assim rejeitam a condição urbana, a condição automóvel, a condição televisiva: no fundo, os instrumentos banais e quotidianos de uma vida sem sentido no mundo pós-industrial. Que diferença em relação à indiferença que encontro em Portugal perante o mundo rural, hoje totalmente destruído ou transformado em motivo de humor mediático! Ou utilizado, à direita e à esquerda, como caricatural referência eleitoral. Ou, o que ainda é pior, utilizado para concretizar a industrialização agrícola, que faz da terra infraestrutura do vazio colectivo.
Deixo a sinopse italiana deste último filme: La trasformazione dell’agricoltura nella Bassa padana, dagli anni Cinquanta a oggi. Cambiamento del paesaggio, delle coltivazioni e avvento della monocultura e degli allevamenti intensivi degli animali. L’immigrazione dai paesi del sud del mondo e dai paesi asiatici che sostituiscono i “paisan”(lavoratori della terra) e i “bergamini” (mungitori di vacche). Le nuove catene dell’industria alimentare, dall’allevamento alla macellazione e alla lavorazione dei prodotti alimentari.

quarta-feira, agosto 19, 2009

Sobre alguma música

Embora ainda não tenha falado de música neste blogue, esta ocupa uma parte importante da minha vida. A música ao vivo, evidentemente, mas também, no quotidiano, a música gravada.

Tenho milhares de gravações musicais. Quase todas no domínio da chamada «música erudita», uma designação que hoje dá conta, não do suposto elitismo da tradição musical do ocidente, mas do triste estado em que se encontra a nossa cultura da fruição, já que é isso, precisamente, que a música é. A cultura musical é um prazer, tanto mais intenso quanto ele passa por uma afinação que o tempo, a escuta, a leitura, o diálogo e o próprio silêncio, fazem crescer. É certo que este, sendo um prazer completo e não apenas epidérmico, traz consigo elementos complexos, ambíguos e mesmo dolorosos. Mas todo o prazer estético é construído a partir de um espectro largo de aspectos da existência. Esse espectro abrange o prazer e a dor, a elevação e o ignóbil, o propósito e o inútil.

Na minha discoteca pessoal, tenho cerca de mil anos de música: do chamado período medieval às músicas contemporâneas. É pouco tempo, historicamente falando, mas é uma janela de referências abissal e quase infinita se tivermos em conta que, para a grande maioria das pessoas, a história da música se limita a alguns escassos anos de actividade da indústria musical de massas. Paradoxo decisivo do nosso tempo: a música está omnipresente na vida desperta dos cidadãos, toca em todo o lado e em todas as situações, mas a música tornou-se também a mercadoria cultural menos valorizada e mais banalizada de todas. Isto é um paradoxo porque, pelo menos desde o Romantismo, os melhores espíritos passaram o tempo a clamar que tínhamos música a menos, que as nossas sociedades burguesas eram dirigidas, no fundo, pelo temor da música, que fingiam cultivar sem a compreender verdadeiramente. O resultado, após os últimos cinquenta anos, em que os media se desenvolveram graças à música, é irónico.

Não me alargarei nestas considerações, que espero, um dia, desenvolver. Quero apenas apresentar algumas das gravações que adquiri mais recentemente e que me deram um tal prazer que me parece lamentável não o partilhar.




Começo pelo tipo de CD que nunca compro, mas que estando disponível a um preço ínfimo, decidi adquirir: a compilação vagamente temática e com fins turísticos, como depreendo. Musiques à Orsay foi editado pela Naïve em 2005. A grande maioria dos excertos compilados provém do catálogo naïve, mas há algumas excepções curiosas como a Ouverture da Gaîté Parisienne de Jacques Offenbach, aqui dirigida por Manuel Rosenthal num disco da Naxos que nunca me decidira a comprar, desconfiado dos estereótipos «Belle Époque» que lhe vinham colados. Afinal é uma interpretação fina e trepidante de vida, ao mesmo tempo!

Mais à frente, dois excertos de gravações dos anos sessenta que nunca tinha ouvido e que foram uma revelação siderante: duas canções, uma de Duparc, L'invitation au voyage (Baudelaire) e a outra de Fauré, Clair de lune (Verlaine), interpretadas pelo barítono Bernard Kruysen e pelo pianista Noël Lee, em gravações do fim do anos sessenta. Está lá tudo: sensibilidade, arte, contenção e emoção, elementos essenciais à mélodie francesa que eu sempre preferi procurar do lado do lied alemão.

Por fim, uma raridade que também desconhecia e que aqui descubro numa gravação recente: de Johann Strauss, em transcrição de Arnold Schönberg (Paris e Viena, o concerto burguês e a vanguarda!), a Kaiserwalzer para quarteto de cordas, flauta, clarinete e piano. Tocam o Quarteto Arditti, Michel Moragues, Paul Meyer e Michel Béroff.

Como disse, nunca compro este tipo de disco. Pelo contrário, tenho um gosto pronunciado pelas integrais, gosto que a situação da edição discográfica tem vindo a sustentar. Mas é verdade que a escuta da música nunca é um exercício de erudição musical, embora esta possa ampliar a sua qualidade. Encontrei este disco em Lisboa há alguns dias, semanas depois de ter estado no Museu do Quai d'Orsay. Nunca tinha tido oportunidade de visitar este museu, embora tivesse estado em Paris, com certa regularidade, nos anos oitenta e noventa. A arte da segunda metade do século XIX é, contudo, essencial para muitas das minhas preocupações relativamente à teoria da modernidade. Conheço bem o espólio do Museu, faz parte do meu «museu imaginário». E encontrei uma bela exposição:
«Voir l'Italie et mourir. Photographie et peinture dans l'Italie du XIXe siècle», onde encontro certas imagens tardias do Grand Tour, como é o caso de daguerreótipos fascinantes através dos quais vemos a Itália da primeira metade e meados do século XIX, um mundo arcaico, mítico e estranho, captado nessa inquietante experiência que é a pré-história da fotografia.



sábado, julho 25, 2009

Jan Patočka (1907–1977)


Na vida «real», alguns (poucos) amigos e amigas falam-me do que lêem neste blogue. Naturalmente, surgiu a questão sobre Patočka: «quem era? O que fez? O que disse sobre a Europa? Como pensou (enquanto europeu)?»

Como, hoje, é um pouco inútil repetir certos dados bio-bibliográficos que estão geralmente disponíveis online, dispenso-me de me alargar nesse domínio. Bastará dizer que Patočka foi aluno de Husserl e de Heidegger em Friburgo, nos anos 30. A partir daí, a sua contribuição para a construção de uma perspectiva fenomenológica nos domínios da cultura e das artes, da teoria da civilização e da política, foi enorme e encontra-se ainda relativamente mal estudada.

As últimas duas décadas da vida de Patočka são bem conhecidas, sobretudo aqueles anos finais em que, proibido de leccionar na Universidade, organiza cursos e conferências no seu pequeno apartamento em Praga. Funda, juntamente com outros, a Carta 77. Virá a morrer de ataque cardíaco, em 13 de Março de 1977, durante (mais) um interrogatório policial.

Mais do que a sua morte trágica e absurda, é esse exercício da filosofia como percurso na vida (em sentido quotidiano e essencial) que sempre me atraiu para o pensamento de Patočka. É, hoje, para muitos de nós, difícil imaginar as condições de vida no Leste europeu. Aquelas de um filósofo, mas, sobretudo, de um cidadão para quem o pensamento era sempre o desafio vivido em todas as horas. Mais do que as condições de vida, estamos aqui perante a questão das condições de pensamento. O dissidente nesse mundo hoje desaparecido era um ser que procurava, necessariamente, alternativas profundas e criativas ao maniqueísmo político e cultural que o rodeava. A questão do ser europeu pode, em minha opinião, ser melhor compreendida quando perspectivada nessa circunstância que era a de Patočka. Evidentemente, esse pensamento não se esgotou nessa especificidade histórica, na medida em que ele funciona, também, como um indicador da especificidade histórica que é a nossa, hoje.

Mas aquilo que é específico no nosso tempo parece ter a ver com efeitos de «distracção» sistematizados e sustentados por dispositivos omnipresentes. Estes enquadram as nossas vidas numa aesthesis do preenchimento (das vidas, das significações, dos acontecimentos). Vivemos em pleno efeito da atenção desdobrada e das esferas de experiência desdobradas. Tudo aqui se parece opor à vida na Checoslováquia dos anos soviéticos: escassez material e energética, escassez audiovisual e mediática, escassez do discurso público. Significa isso que a escassez e o totalitarismo favorecem o pensamento filosófico? Penso que dizê-lo seria colocar mal o problema. Patočka situa esta questão ao nível do que ele chama o «cuidado da alma», expressão que aqui deve ser reenviada ao próprio pensamento platónico. Traduzo uma passagem dos seus Ensaios Heréticos:

«O Homem é justo e verídico na medida em que tenha a preocupação da alma. A herança da filosofia clássica grega é o cuidado da alma. Ele significa: a verdade não é dada uma vez por todas; ela também não é a simples questão da contemplação e da apropriação pelo pensamento, mas consiste antes na praxis da vida intelectual, já que quem a vive sonda-se, controla-se e unifica-se a si mesmo. No pensamento grego, o cuidado da alma foi afinado segundo duas formas: cuidamos da alma para que ela possa, numa pureza absoluta, e através de um olhar não perturbado, caminhar espiritualmente através do mundo, através da eternidade do cosmos e, por aí, atingir, por um breve instante que seja, o modo existencial que é próprio dos deuses» (in Essais Hérétiques, Verdier, 1981, p. 92).

sábado, junho 13, 2009

A Europa e a vida com sentido


Há alguns dias, ocorreram eleições "europeias". Em Portugal, tudo se passou como todos previam: na indiferença geral, na petite histoire. Enfim, pequena política e menor pensamento de todos os envolvidos. A indiferença não nos deveria espantar, já que ela decorre da ignorância profunda que caracteriza os actores políticos em Portugal. Ignorância do sentido de decência, mas também ignorância do que seja uma vida com sentido. Este tipo de ignorância, que nunca vemos referida, é a mais destrutiva de todas, já que entrega a polis à economia e aos tradding affairs.

Que a Europa não faz sentido para a maioria dos portugueses, sentido que não seja alimentar ou mirífico, é evidente. Num país onde o debate (?) político está no seu nível mais baixo, onde a qualidade intelectual, linguística e humana dos intervenientes é indescritível, o sentido da Europa seria sempre a menor das preocupações levantadas. Note-se que o sentido de que falo possui vários planos, que necessariamente se articulariam em qualquer argumentação estruturada: em primeiro lugar, a própria ideia de Europa, já que a herança europeia depende mais das ideias do que de supostas "realidades" territoriais ou estratégicas; em segundo lugar, o plano desta Comunidade Europeia, que existe mas que não sabe muito bem o que fazer dessa sua existência num mundo onde as linhas de sentido não revelam um desenho claro. Não se pede aos actores da política europeia, nem aos eleitores portugueses, que tenham lido Jan Patočka ou Hans-Georg Gadamer, para citar apenas dois autores que, sendo pensadores europeus, por isso mesmo pensaram a Europa. Mas pede-se, pelo menos, a vaga noção de que a Europa é uma ideia e não uma entidade orgânica.

Patočka foi um dos muitos espíritos que perceberam que no coração da ideia de Europa reside a palavra "crise". Que a Europa não vive "crises" pela simples razão de ela se encontrar já fundada numa territorialidade da Krisis (a crise, em sentido grego). Neste sentido, a crise europeia não é apenas um produto dos eventos históricos, mas a própria matriz do que significa "evento" para os europeus. A sucessão das ruínas é o verdadeiro marcador da história europeia: a Europa nasce da ruína da pax romana, do mesmo modo que esta nascera da ruína da polis grega. A radicalidade da ideia de Europa reside, ao invés de outras regiões imperiais do mundo, na sua finitude.

É a radical finitude europeia que define as melhores ideias dos europeus: no plano filosófico, no estético, no político-social, nos costumes. O motivo heideggeriano do Sein zum Tode pode aqui ser evocado se nele virmos, não os equívocos tenebrosos das piores horas europeias, mas a marca de povos que têm sempre debaixo dos olhos o mundo finito que os define. A finitude tem hoje mais um nome, que deve ser entendido na linha espiritual de que um Patočka fala: esse nome é ecologia e deveria ser retirado às forças tecnocráticas que dele se apropriam hoje.

terça-feira, abril 07, 2009

Convite para NADA



Finalmente, há NADA no ciberespaço! Devemo-la, para além de qualquer medida, ao João Urbano, criador de cultura no sentido mais amplo e generoso do termo. Há poucos como o João. E muito poucos em Portugal, lugar onde a vivacidade de espírito, a criatividade inquieta, algo desse caos interior que nos retira aos pequenos negócios do quotidiano, parecem inconveniências para a carência em que arrastamos as vidas.

O nada da NADA é diferente: não é o sentido que se faz nada à nossa volta (todos podem vê-lo, se quiserem), mas antes o regresso ao NADA de toda a explosão de sentido. Estamos na NADA com muito prazer e orgulho. E vamos desfazendo os pequenos nadas para que o sentido e os sentidos possam aparecer nus, terríveis, sarcásticos e indiferentes aos pequenos programas que lhes queremos impingir.

www.nada.com.pt

Atenção: a NADA continua a sua existência de papel. Como lá escrevemos, não se trata de um upgrade:
«A Nada entra na rede depois de já ter passado seis anos no papel. Não se trata de uma migração porque não é para um lugar que nos dirigimos. Permanecemos no papel porque ele nos lembra uma persistência áspera das palavras que nos encanta ainda. Mas aquilo que se sustenta de nada não pode ser definido pelo seu suporte. Nem pelo suposto lugar que esse suporte ocupa. Muito menos pela origem ou pela referenciação temática. As palavras que nos ocupam andam perdidas connosco. Deslocar as palavras nada nos diz. Desde sempre, as palavras encontram-se já deslocadas, razão pela qual o ciberespaço poderia ter sido a explicitação dessa condição se não estivesse transformado na farmácia sem horário e sem prescrição do nosso tempo.»

quarta-feira, março 25, 2009

Onde está o arquivo de Vilém Flusser?


Recebemos, há pouco, um comentário enviado por Gomes Moor, que agradecemos, onde este nos informa de que o arquivo Vilém Flusser teria sido transferido há alguns meses, de Colónia para Berlim. Se assim foi, e se todo o arquivo Flusser foi transferido nessa ocasião, teremos, então, algum alívio no meio das desoladoras notícias que nos chegam de Colónia. Existe, efectivamente, a informação de que um núcleo importante da documentação de Flusser estava, ainda recentemente, no Arquivo Municipal de Colónia. Foi este integralmente transferido para Berlim? Eis o endereço online do Arquivo:

http://www.flusser-archive.org/

Agradecemos todos os comentários que possam confirmar esta informação.

Espólio de Vilém Flusser perdido?



















No passado dia 3 de Março, o Arquivo Municipal de Colónia ruiu. Numa cidade como Colónia, um acidente destes atinge proporções calamitosas para a cultura europeia: estavam lá, por exemplo, a colecção medieval de Ferdinand Wallraf, originais de Hegel e Marx, os espólios de Günter Wand, o último maestro culto da Alemanha, assim como de Heinrich Böll. Há muito que a Alemanha era uma sombra de si mesma. E um pouco mais sombra ficou. Por nossa parte, também mais pobres como europeus ficamos.

Entre tantos documentos perdidos, há um conjunto que queremos aqui destacar pela sua singularidade e importância: o espólio de Vilém Flusser. Não sabíamos que se encontrava reunido no Arquivo de Colónia. Possivelmente, não todo, já que o percurso de Flusser o conduziu a muitos lugares.

Quem era Vilém Flusser? Nascido em Praga, em 1920, na jovem República Checoslovaca, de origem judaica e detentor dessa riquíssima curiosidade intelectual e multilinguística que nos deu alguns dos grandes espíritos da mitteleuropa, Flusser exila-se no Brasil, em 1940, juntamente com a sua esposa Edith. Aí viverá 30 anos, dando aulas na Universidade, escrevendo em jornais e revistas brasileiras de Filosofia. Aí publicará alguns livros de extrema originalidade, directamente escritos em português. Em 1963, publica, na Herder de S. Paulo, Língua e Realidade, um fascinante estudo sobre estruturas das línguas, ontologia e cultura (agradeço a Rafael Gomes Filipe ter-me feito chegar um tão raro e magnífico texto). Publicará aí, igualmente, Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade
.

Regressado à Europa em 1972, virá a publicar, entre muitos outros títulos, Für eine Philosophie der Fotografie, de que existe versão portuguesa do próprio Flusser. Esse estudo retoma a questão da fotografia a partir de um ponto de vista que era característico de Flusser: simultaneamente, técnica e história do ser são examinados a partir de uma filosofia parcialmente ainda por escrever. É uma história de naufrágio dos meios, das aprendizagens do olhar e do enigma das técnicas configurado na expressão "caixa preta" que dá título à versão portuguesa. De um modo sucinto e poderoso, escreve Flusser: «A função das imagens técnicas é a de emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceptualmente. As imagens técnicas devem substituir a consciência histórica por uma consciência mágica de segunda ordem. Substituir a a capacidade conceptual por uma capacidade imaginativa de segunda ordem. E é neste sentido que as imagens técnicas tendem a eliminar os textos. Com essa finalidade é que foram inventadas. Os textos haviam sido inventados no II milénio a. C., a fim de "desmagiciarem" as imagens. As fotografias forma inventadas no séc. XIX, a fim de "remagiciarem" os textos.» in Filosofia da Caixa Preta, p. 12.

Esta obra dá-nos a ler um pensamento aventuroso em tempo de catástrofe. As catástrofes conjugadas da cultura da mitteleuropa e da condição judaica. As aventuras conjugadas da errância, do fulgor do espírito, da insubordinação dos saberes.

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Situação das "páginas culturais": o inconsciente ex-posto






























A tradição das "páginas culturais" na imprensa escrita portuguesa é já longa e teve os seus momentos significativos em jornais tão diversos como o Comércio do Porto, o Diário Popular, Expresso, o Diário de Lisboa, o Público, entre outros. Há, hoje, evidentemente, uma crise desses conteúdos e do espaço editorial que lhes é dedicado. Em nossa opinião, essa situação não pode ser atribuída à crise geral da imprensa escrita, à concorrência dos novos media, à nova percepção da cultura nos públicos actuais. A crise é, antes do mais, um sinal de leviandade no manejar dos problemas do sentido. O mesmo será dizer, um sinal de pobreza cultural, de "facilidade" em reduzir o sentido, que é problemático, em informação cultural, que surge sempre já resolvida ou resolúvel.

Vejamos um duplo exemplo recente: quase simultaneamente, dois jornais ibéricos (um de língua portuguesa e outro de língua castelhana) dedicaram algum do seu espaço "cultural" à figura e ao pensamento de Martin Heidegger: o Público de 6 de Fevereiro de 2009 e o ABC de 7 de Fevereiro de 2009. O primeiro ocupou, no seu suplemento Ípsilon, algumas páginas com as relações entre nazismo e cultura, a propósito do ciclo do CCB. Aí, podemos ler, em declarações de João Paulo Cotrim a propósito da relação amorosa entre Heidegger e Hannah Arendt, o seguinte: «"Se esta fosse apenas uma história de amor entre um professor com 35 anos e uma jovem com 18, seria igual a muitas que acontecem todos os dias nas universidades", diz. "A questão é que ela é judia, e ele tem um pensamento filosófico que se aproxima muito do nazismo puro. Ele é nazi antes do nazismo"» (Ípsilon, p. 17).

Como conhecemos João Paulo Cotrim, mais nos custa compreender esta "facilidade" em definir o pensamento de Heidegger, a ligação entre filosofia e nazismo, o próprio nazismo e esta curiosa condição de se "ser nazi antes do nazismo". Com um pequeno esforço, talvez JPC pudesse afirmar que o nazismo foi uma espécie de palimpsesto do pensamento de Heidegger!

Por seu lado, o ABCD, suplemento de artes e letras do diário ABC, publica um ensaio de Eugenio Trías elaborado em torno de duas novidades editoriais: o livro No Saber (Poesía), de Jorge Alemán (Demipage, Madrid) e Fernando Ojea, Sentido del Nascimiento y Origen del Sentido (Arena Libros, Madrid). Desde logo, não estamos perante uma distância de 600 km entre os dois periódicos, mas perante a distância entre o discurso cultural aquecido rapidamente em micro-ondas e a cultura produzida a partir da complexa relação que nela se estabelece entre luz e sombra, amargura e prazer, memória e esquecimento.

Trías articula, de forma brilhante, o problema da presença da psicanálise em Espanha («un país en el que la presencia del psicoanálisis no estuvo nunca asegurada») com aquilo que ele designa como duas terríveis amputações: a dupla expulsão, com os Reis Católicos, da vasta minoria judaica e dos mouros já no século XVII. «La ausencia de minorías cultas, especialmente de origen judío, es quizás, una importante clave para entender el desinterés y la falta de motivación que en España ha tenido en ocasiones esa encrucijada entre psicoanálisis y filosofia, tan necessaria para entender la vida intelectual occidental en estos pasajes de modernidad y postmodernidad» (ABCD, p. 22).

Ora, acompanhar essa vida intelectual pede-nos, por exemplo, a capacidade de confrontarmos o pensamento psicanalítico de Freud-Lacan com a crítica à metafísica de Heidegger. De algum modo, Trías já o começara a fazer no seu livro Filosofia del futuro. Escreve ele, sem precisar de produzir afirmações publicitárias sobre "o nazismo antes do nazismo": «Posiblemente es la concepción del Sein zum Tode, ser relativo a la muerte, de Ser y Tiempo, lo que requiere uma revisión a fondo. Debía modificarse la idea heideggeriana del ser en el mundo como Sein zum Tode por la idea de ser para la recreación». Esso significa desplazar el énfasis mortuorio que atraviesa Ser y el Tiempo por una bien distinta: atender, más que a la angustia de la nada ubicada en el sein zum Tode, a aquélla, pensada por Freud en Inhibición, sintoma y angustia, en donde es, más bien, la disposición mediante la cual tiene lugar el acto mísmo del nacimiento. Allí Freud se da cita con Otto Rank (El trauma del nacimiento)» (ABCD, p. 22).

A partir destas aproximações, Trías rejeita a noção de um corte radical entre o biológico e o psíquico, que determinaria o nascimento como um novum radical. Comentando o livro de Fernando Ojea, Trías pode concluir que o carácter prematuro e imaturo do embrião-feto, ao surgir no mundo, mascara uma maturidade ontológica própria de quem acabará por ser sujeito de desejo e de gozo. Heidegger, não será, contudo, totalmente estranho à relação matricial e à sua profundidade acústica: o conceito de Mitsein (também presente em Sein und Zeit), o "ser-com" da relação amorosa, permite-nos reler a própria proto-esfera ontológica que forma a conjunção entre o embrião-feto e a mãe.

Agradecemos ao autor de Lo bello y lo siniestro, a capacidade de, num breve texto de jornal, nos apresentar um ponto de vista sustentado em ligações inteligentes e ousadas. Supomos que nunca lhe ocorreria colocar Hannah Arendt no lugar novelesco da jovem estudante judia que ama um nazi. A gestação ontológica do amor, a problemática do Mitsein, seria um caminho filosófico para lermos essa correspondência entre Heidegger e Arendt que parece queimar tanto as mãos dos bem-pensantes. E esse caminho não estaria deslocado nas páginas de um jornal. Excepto, talvez, no Portugal contemporâneo...

A mulher que nos legou uma teoria do totalitarismo é a mesma que amou e pensou com Heidegger. É também a mesma que escreveu, no seu texto sobre o amor em S. Agostinho, a seguinte passagem: «Todo o bem ou todo o mal é iminente. O que é iminente, na sua última fronteira, é aquilo para que se dirige, incessantemente a vida, é a morte. Toda a presença do homem, determinada por esta iminência, é, efectivamente, um contínuo ainda-não. Todo o ter é determinado pelo medo, todo o não-ter pelo desejo» (Arendt, Der Liebesbegriff bei Augustin, p. 37).

quinta-feira, janeiro 01, 2009

REAVER/VER



O presente não é senão a parte de não-vivido que existe em todo o vivido, e o que impede o acesso ao presente é precisamente o conjunto do que, por uma razão ou por outra (o seu carácter traumático, a sua demasiada proximidade), nós não conseguimos viver nele. A atenção a este não-vivido é a vida do contemporâneo.
Giorgio AGAMBEN, Qu'est-ce que le Contemporain?, Payot, 2008
(tradução de Vítor Oliveira Jorge, trans-ferir.blogspot.com )

O acesso ao presente é um procedimento existencial que se tornou particularmente problemático na modernidade tardia. O presente, que hoje é confundido com a «presença», multiplicou-se naquilo que ele tem de vivido em modo de «diferimento», o que quer dizer que o presente se transformou numa categoria carregada de múltiplas presenças que só o são na medida em que acedem a alguma vivência, a qualquer presença capaz de se dizer «operatória», como quem dizia antes «consciente» ou «viva».
Sendo assim, o não-vivido, que é, segundo Agamben, a matéria que liga a vivência à contemporaneidade, dissemina-se muito para além daquela que era a sua disseminação primeira, a do recalcamento, onde podia ser reavido por um acto de renúncia à consciência apropriante do sujeito. O não-vivido, podemos dizê-lo, faz-se circuito indispensável que serpenteia entre as presenças diferidas das redes. Desse modo, se todo o presente estava disponível para ser reencontrado nessa zona de profunda improdutividade, ele é agora constantemente reenviado à presença e à sua produtividade inerente. Era renunciado ao imperativo da presença (da telepresença) que podíamos estabelecer uma consciência da contemporaneidade.
Digamos que o gesto de reaver, só possível pela renúncia, passou a ser curto-circuitado pela acção do reenvio. Fica a pergunta: o que distingue uma vida que reouvemos de uma vida que reenviámos?