O
centenário de Octavio Paz passou em silêncio entre nós. Trata-se de um silêncio
que diminui a poesia porque o nome de Paz é sinónimo de um expansionismo
poético insuportável para todos os poderes que submetem a palavra. E o
escândalo que aqui exprimo não é um tributo ao Nobel que lhe atribuíram. Neste
caso, o Nobel da literatura circunscreve este nome, sinónimo das facetas
múltiplas da paixão, e não apenas das literárias, nome de cantor poético do que
de vivo e morto forma o universo. Este mexicano que se entregou à paixão das
culturas ameríndias, ao culto das poéticas orientais, aos enigmas da flora
verbal e da carne erótica é um poeta que devemos reivindicar para a esfera da
nossa literatura, porque, a partir desta, o convidam um Padre António Vieira ou
um Garcia da Orta, um Pessanha ou um Wenceslau, Pessoa, decerto, mas também
António Barahona ou tantos outros que conheceram essa estranha doença quimérica
que atinge alguns latinos dados ao balanceamento frágil entre os céus plúmbeos das
américas e os os vapores samsáricos
do oriente.
Paz
foi um poeta de língua castelhana, evidentemente. E um dos maiores do último
século. Um poeta das américas, nascido à sombra das pirâmides astecas, que
respirou o ar fresco e rescendente das igrejas da Contra-Reforma e, diante
delas, viu passar a folia da morte. Um homem assim teria de ser um habitante da
poesia que, escutado a partir da cultura portuguesa, podemos reconhecer
imediatamente. Foi precisamente essa a decisão de Paz: habitar o mundo como
quem vive a poesia nas suas múltiplas latitudes. Melhor: um habitante da poesia
que assim desflora o mundo e lhe saboreia os múltiplos gomos. Porque a terra da língua, quando a abrimos com os
dedos, verte sucos e aromas variados que se misturam. Ora, o acto poético é,
nele, uma operação de tradução. E, por seu lado, a tradução só pode formar-se
como poema. Daí que Octavio Paz seja o poeta que faz amor com as culturas, tal
como Ezra Pound fora, antes, aquele que as punha a cantar em concílio: o autor
dos Cantos já mostrara que a tradução
é uma acção indistinguível da criação poética, mas demonstrava-o, no seu caso, tomado
por nostalgias e violências muitas diversas.
Paz
viveu nas Américas, na Europa e na Ásia. Trata-se de um dado essencial para
reconstruirmos a sua crença trinitária na poesia. Chegado à Europa, nos anos
trinta, a amizade com André Breton era inevitável: esses dois homens tinham
descoberto, ao mesmo tempo, que a alma do mundo era a sua alma primitiva e que,
no centro de ambas, estava o amor, os seus ardores, a sua festa erótica e roída
pelos vermes da terra. No seu El Arco y
la lira, diz: «O amor é um estado de reunião e participação, aberto aos
homens: no acto amoroso a consciência é como a onda que, vencido o obstáculo e
antes de se despenhar, ergue-se numa plenitude em que tudo – forma e movimento,
impulso para o alto e força da gravidade – alcança um equilíbrio sem apoio,
sustentado em si mesmo» (Obras Completas
1, Fondo de Cultura Económica, p.18). Esse estado de equilíbrio precário
deve lembrar-nos as poéticas portuguesas e o seu «centro móvel», «uma maneira
de assegurarmos a continuidade do nosso passado ao transformá-lo em diálogo com
outras civilizações. Continuidade e diálogo ilusórios: tradução: transmutação:
solipsismo» (El Signo y el garabato,
Seix Barral, p. 156).
Ele
próprio conta como, por um acaso que nunca tinha antecipado, enquanto exercia
um modesto cargo diplomático em Paris, que lhe permitia ser escritor dentro
daquele conforto de que usufruem todos os que se entregam às vilegiaturas
míticas da cultura moderna, foi inesperadamente transferido para a Índia. Este
encontro deu origem a um dos seus mais belos livros, El Mono gramático, evocação do macaco sagrado do Ramayana: «Hanuman: mono/grama da
linguagem, do seu dinamismo e da sua incessante produção de invenções fonéticas
e semânticas. Ideograma do poeta, senhor/servidor da metamorfose universal:
macaco imitador, artista das repetições, ele é o animal aristotélico que copia
o natural, mas é também a semente semântica, a semente-bomba enterrada no
subsolo verbal, que nunca se converterá em planta que aguarda o semeador, mas
numa outra, sempre numa outra. Os frutos sexuais e as flores carnívoras da
alteridade brotam do único caule da identidade» (Le Singe grammairien, Skira, p. 130).
Esta rotação de signos permite a rotação das culturas. Em El Laberinto de la Soledad, talvez a sua obra mais conhecida, Paz opôs-se energicamente a um conjunto de intelectuais mexicanos que procuravam definir a sua cultura nacional a partir de um ponto de vista ontológico – o «ser mexicano». Escreveu ele: «A mim intrigava-me (intriga-me), não tanto o ‘carácter nacional’, mas sim o que oculta esse carácter: aquilo que está por detrás da máscara. Nesta perspectiva, o carácter dos mexicanos não cumpre uma função distinta daquele de outros povos e sociedades: por um lado, é um escudo, um muro; por outro, um feixe de signos, um hieróglifo» (El Laberinto de la soledad, Cátedra, p. 364). Advertência àqueles que procuram o carácter português como se nele não houvesse esse jogo de máscaras.
Esta rotação de signos permite a rotação das culturas. Em El Laberinto de la Soledad, talvez a sua obra mais conhecida, Paz opôs-se energicamente a um conjunto de intelectuais mexicanos que procuravam definir a sua cultura nacional a partir de um ponto de vista ontológico – o «ser mexicano». Escreveu ele: «A mim intrigava-me (intriga-me), não tanto o ‘carácter nacional’, mas sim o que oculta esse carácter: aquilo que está por detrás da máscara. Nesta perspectiva, o carácter dos mexicanos não cumpre uma função distinta daquele de outros povos e sociedades: por um lado, é um escudo, um muro; por outro, um feixe de signos, um hieróglifo» (El Laberinto de la soledad, Cátedra, p. 364). Advertência àqueles que procuram o carácter português como se nele não houvesse esse jogo de máscaras.
Estivesse
no México, na Europa ou no Rajastão, Octavio Paz associou sempre a experiência
poética à vivência de identificação mais íntima com o que chamamos o «real».
Pela poesia, «o universo deixa de ser um vasto armazém de coisas heterogéneas.
[…] A poesia põe o homem fora de si e, simultaneamente, fá-lo regressar ao seu
ser original: devolve-o a si. O homem é a sua imagem: ele mesmo e aquele outro.
Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a
ser – é. A poesia é a entrada no ser» (ibidem,
p. 51). O nosso José Augusto Seabra também foi embaixador na Índia e escreveu
um Caminho íntimo para a Índia. Se
nem tudo é semelhante neles, é-o certamente a comum leitura poética da viagem
no mundo. O labirinto dos portugueses, que é talvez o da saudade, sendo ainda o
mesmo, tem certas violências em surdina que lhe são próprias. Ditas por um Pessoa
que ambos souberam escutar.
Jorge Leandro Rosa
publicado em As Artes entre as Letras, Porto, nº 121. 30 de Abril de 2014