Sans
souci
As
nossas memórias mais verdadeiras do encontro com a arte são aquelas oriundas da
descoberta precoce, quando nos deparamos com aquilo que nos entontece e
surpreende. Como se pudéssemos descobrir obras sem termos ainda tomado
conhecimento que nós próprios somos nascidos. Aí, a partir do íntimo, sabemos
que o que vemos se instala em nós sem ter sido convidado.
O
que é forte é a ignorância e não o saber. Somos surpreendidos pela clareza
dessa ignorância. Se, nesse momento, se forma um laço entre a verdade e a arte,
esse laço terá de ser um erro, cometido por virtude de uma falta inscrita na
vida: algo que resistirá, daí em diante, a toda a educação e a toda a
inteligência. A arte não é um preenchimento mas a formalização de uma
puerilidade desnuda. Assim despidos, poderemos tomar duas orientações: uma
vulgar, que acumula sentido nos encontros com as obras; uma outra, ignorante,
que se esvazia nas obras com que
deparamos. Passaremos, assim, toda uma vida a corrigir o erro que afirmou certo
dia a presença da arte e que é paralelo àquele em que nos vão dizendo que
também nascemos. Há aqui um engano precioso.
As
artes não cabem na construção das vivências. As artes só vêm ao mundo na medida
em que revelam o verdadeiro processo do nascimento e se substituem, assim, à
impressão vulgar e cega de termos nascido. E julgo que só aí o erro da arte se
forma como o aviso – sempre urgente mas duvidosamente útil e efémero – de que a
vida decorrerá num equívoco. Rapidamente, passaremos a envergonhar-nos desses
pequenos erros de apreciação e tomá-los-emos por fragmentos sentimentais da
infância.
Lembro-me
de estar sentado junto da minha mãe, que me comprava os fascículos de uma História da Arte que ainda tenho na
biblioteca. Conservo-a, embora não a consulte espontaneamente, já que adquiriu
um daqueles estatutos iniciáticos que persistem por serem sumamente misteriosos.
No meu orgulho pueril de lhe mostrar a minha aquisição dedicada às
«belas-artes», deparámo-nos, na página trinta e dois, com a reprodução do
«Cântaro Quebrado» de Greuze. Pressinto, logo no momento em que ela vira a
página, uma reticência na minha mãe, uma desaprovação que não percebo.
Lembro-me da luz de fim de tarde na sala e de como esta foi abandonada pelos
cambiantes quentes que tivera no instante anterior ao virar dessa página. Ela
via neste quadro – uma obra anterior à Revolução – uma alusão equívoca que lhe
desagradava. Confesso que não percebi e que a acusei, intimamente, de
incompreensão. Algo se quebrou nesse momento – injusta e silenciosamente –
entre mim e a minha mãe. Talvez o segredo de um nascimento partilhado que não
admite a intromissão da arte. A arte é aquilo que se expõe num mundo onde os
seres já se encontram apesar de tudo.
A
ignorância era minha: Greuze era um pintor que explorava um sentimentalismo que
não dispensava a sugestão sexual nas suas meninas púberes. Uma Lolita
setecentista? Havia-as abundantemente na cultura da época. Mas tudo nela
evocava esse dilema que o convívio com as obras de arte nos coloca agudamente e
que Kandinsky recordou ao afirmar que «a filosofia do futuro, além da essência
das coisas, estudará também o seu espírito com particular atenção». O que
entender aqui por «espírito»? O espírito de uma obra é aquilo que a nega a
partir de dentro, que a nega como construção reconhecível, para dela só nos dar
algo que a recusa activamente. Daí que a estética futura só possa apresentar-se
como ciência da recusa em arte. Ora, Greuze já o fazia sem espírito, quer dizer, sem saber que a recusa é o princípio do
nascimento do objecto artístico que se dá
a ver, a negação da nossa presença carnal.
Essa
obra algo menor sucedia-se à reprodução, que se estendia em dupla página, do Embarquement pour Cythère, de Antoine Watteau.
Os nomes dos chamados pintores galantes do século XVIII não me diziam nada até
que descobri, na adolescência, o Museu Calouste Gulbenkian e, aí, um dos
quadros da minha vida: Le Tapis Vert,
de Hubert Robert, o pintor que melhor captou a lição espiritual de Watteau. O
que neste decorre é estranhamente confuso e ordenado: é a natureza no seu
aparente bucolismo, mas o convívio entre estátuas do passado e personagens
quotidianas diz-nos que esta beleza é um erro. Um erro que pareceria benigno,
não fossem as ramadas de árvore quebradas e arrancadas. Estes quadros são ainda,
para mim, a representação do erro que é a arte. Por isso os amo.
Muitos
anos depois dessa tarde, pude visitar o Pavilhão de Sanssouci, em Potsdam. Conhecia, há décadas, graças à minha História da Arte, a imagem mítica do
pequeno palácio sem preocupações de
Frederico o Grande. É que – verifico agora com espanto –, logo na página treze
desse mesmo volume está a fotografia do centro da fachada onde se inscreve a
divisa sans souci, encimando os
atlantes e as cariátides que fingem sustentar a cúpula. Um lugar dedicado às
três coisas que constituem um refrigério na vida do monarca iluminado: a
natureza, as artes e a filosofia. Uma das minhas grandes expectativas nessa
visita era a profusa colecção de obras de Watteau, pintor preferido, ao que consta,
do rei iluminista. Watteau mistura-se, ao longo das salas, com a decoração
característica da época e com a sua falsa despreocupação. Mistura-se aí a vida certa do Pavilhão com a vida errada das personagens de Watteau. Por
isso, ele tornou mais sublime o erro que a arte nos volta a contar uma e outra
vez. O meu erro infantil era, afinal, o erro de Frederico da Prússia. Deveria
poder dizê-lo hoje à minha mãe.
Crónica publicada em «As Artes entre as Letras», 15 de Janeiro de 2014