(Recensão de Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Guimarães, Lisboa, 2012. Publicada em As Artes entre as Letras, números 148 e 149, Junho de 2015)
1.
Os textos biográficos –
particularmente aqueles dedicados a homens e mulheres que escreveram – são
salomónicos: desembocam sempre na inevitável repartição dos materiais entre os
gestos próprios do escrito e os gestos indecidíveis de uma existência. O
biógrafo tem, então, duas opções: ou oculta sistematicamente o problema que
essa decisão de vida ou morte lhe
coloca, a fim de poder construir uma tese sobre certa vida, ou decide expô-lo,
indecidível como ele é, no seu próprio texto. Neste último caso – que é aquele
de Agustina enquanto biógrafa – o problema do biógrafo acompanha, linha a
linha, página a página, o problema do biografado. E já não pode haver aí
biografia bem comportada, cronológica e apaziguadora. Há só epístolas que não
se pôde enviar, mas que acabam por vir a uma luz que não procuraram, como
sucede com esta Agustina Kafkiana.
Dá-se então um jogo de aproximações e recuos, denso e doloroso, entre o dilema
próprio do biógrafo, escritor que se exprime na resiliência da vida, e o dilema
desse outro escritor que está já morto, decerto, mas morto na misteriosa
imperfeição da morte que é a literatura. É pela literatura que este oculta a
vida no texto que estende ao primeiro.
Agustina foi habituada
pelo gesto narrativo a colocar-se diante de personagens que falham
sistematicamente a tentativa de se ocultarem. No texto biográfico, essa
ocultação recorre à morte como artimanha derradeira. O biografado veste-se aí de
morte, da morte que inscrevera na literatura, e tudo o que consegue é revelar
uma vida silente. Não é Agustina que retira as suas personagens à morte e lhes
vem dar a vida póstuma: são elas que se enlaçam nessa narração perpassada por
um cepticismo sobre a possibilidade biográfica, quer dizer, sobre a vida após a
morte. Se verificarmos com atenção, veremos que esse cepticismo se refere
sobretudo à construção de um texto que esclareça
uma vida, nunca à continuidade entre vida escrita e vida sonhada, que constitui
a única matéria propriamente viva da escrita de Agustina. Assim, a recusa da
vida biografada em revelar-se ilumina a própria agitação do que se esforça por
se ocultar e que não é mais do que a própria vida:
«Usando
uma expressão do próprio Kafka, todos nós somos um ninho de ratos povoado de
pensamentos reservados. E quando se trata de examinar e medir o Bem, ou quando
se trata de examinar o mais ínfimo dos nossos actos, recuamos para aquém dos
nossos pensamentos reservados. Porque a lama estende-se pelos terrenos mais
profundos, e não a lava ou o húmus vivificador.[1]»
Diante de Kafka, a
escrita viva de Agustina depara com as particularidades do exposto kafkiano. Se,
neste, tudo parece constituir, paradoxalmente, um «caso subterrâneo», tal
sucede porque, tal como acontece à toupeira, «a reflexão não o embeleza, mas
permite-lhe esperar que a aparência se transformará em natureza e que o macio pêlo
da toupeira será um dia a doce face da sua alma»[2].
Tudo em Kafka se expõe, mas aí onde a exposição não é esperada: na vida
reservada, na espera e no risco. Essa exposição é perturbadora e releva da
inteligência, ao contrário do tipo de exposição que vemos hoje nos media, fruto da cobardia inscrita na
complacência. No texto «Um presépio aberto», Agustina fala-nos de um Kafka
«educador». Essa é uma das passagens deste livro em que dois tipos de escritores inteligentes – Kafka e
Agustina – se reconhecem mutuamente. Lemos aí a mais alta forma de biografia
concentrada na seguinte frase: «A inteligência é, para Kafka, uma maneira de
ser poupado por essa terrível força que sacode e destrói tudo quanto é vivo»[3].
Agustina, a escritora, que tantos enredos desdobrou a partir do domesticado e
do indomesticável, depara-se, fascinada, com esta inteligência que não aparece
como luz, mas antes «como um véu prodigioso»[4].
Os textos que Agustina
Bessa-Luís dedica a Kafka pertencem a uma família singular, um tipo de ensaios
só possível de gerar na amizade. A amizade literária, tão mais rara do que a
inimizade, é aquela desprovida de toda a complacência. No que se refere a
Kafka, essa é ainda a grande tradição quando queremos conhecer o que foi
escrito sobre o autor de Metamorfose.
É uma tradição inaugurada por Max Brod, o amigo tão elogiado enquanto
socorrista dos manuscritos quanto criticado no seu papel de editor destes, e
continuada por Gustav Janouch, a criança que encontra Kafka sem nunca vir a ser
tomada, em toda a sua vida, pela impaciência da mendiga de Praga evocada por
Agustina. Ser amigo de Kafka era, ao que parece, uma fonte de alegrias
espirituais mas também daquelas banalmente quotidianas. Nestes textos, podemos
verificar que Agustina conhece bem a alegria subtilmente dolorosa da amizade de
Kafka, embora este tenha desaparecido pouco depois do seu nascimento. Os amigos
em literatura foram aqueles que antecederam as classes profissionais que viriam
a substituí-los progressivamente a partir do séc. XIX: os escritores
profissionais (que nem Agustina nem Kafka são), os críticos, os professores de
literatura, enfim, os diversos grupos de especialistas. Poucos destes são
fiáveis na amizade. É por isso que a homenagem que Agustina faz a Kafka rejeita
incisivamente toda a apropriação dessa amizade:
«Em
geral, só os literatos se interessam por Kafka e o divulgam para honra das
Letras. Mas um homem como Kafka corresponde à honra da humanidade no seu
sentido de valor total, que protege e codifica as leis tanto da sobrevivência
como da supervivência.»[5]
Só a amizade oferece a
ocasião de escrever tão profundamente sobre o ofício literário que ambos
partilham e sobre a sua estranheza. É certo, contudo, que os processos pelos
quais Kafka e Agustina confrontaram essa estranheza são diametralmente opostos.
Em Kafka, o resultado textual desse ofício aspira ao desaparecimento. Só uma
conivência inconfessável preservará muitos dos textos dispersos. Em Agustina,
toda a escrita parece já formada quando vem à luz do dia, destinada a ficar na
luz solar, embora ocultando a sua longa raiz. Por isso mesmo, é Kafka tão
importante para Agustina. Em tudo diferentes, mas irmanados numa característica
comum: nunca a literatura tende neles para o trágico, já que a tragédia é um
luxo que deixam aos povos dominantes e às castas que se afirmam na História.
2.
Há duas ou três formas
inteligentes de escrever sobre Kafka. Mas a inteligência de Kafka não reside apenas
na escrita, caso em que a inteligência biográfica seria apenas um encontro
acidental. A grande recriação de Kafka como escritor «inteligente», ou seja,
como hipertrofia do escritor, encontramo-la em Blanchot. Numa primeira
abordagem, parece existir entre este e Agustina uma improvável comunidade
kafkiana. Aliás, os anos dos textos que Blanchot dedicou a Kafka estendem-se
por vinte e cinco, um número não distante dos vinte e dois anos de missivas que
aqui lhe dirige Agustina[6]. Agustina,
sabemo-lo, é uma escritora em quem a inteligência é o dom de uma natureza (mas
não a «sua natureza») que vem pelo escrito, ou seja, uma natureza que só existe
plenamente pela afirmação. Ao invés, Kafka combate os dons que a escrita lhe
revela, coloca-os à prova, já que a literatura é para ele «um sucesso da
solidão». Como escreve Blanchot, pensando em Kafka, «a literatura, ao fazer-se
impotência em revelar, quereria tornar-se revelação daquilo que a revelação
destrói»[7].
Mas Blanchot engana-se quando logo acrescenta que esse é «um esforço trágico». É
antes um esforço cómico, o que não lhe retira a sua profunda verdade. Com
efeito, os esforços de Kafka nunca incidem naquilo que esperaríamos e são
sempre surpreendentes. São, aliás, uma das dimensões fundamentais do humor
kafkiano, que Agustina tão bem capta numa passagem magistral:
«Não
se trata de um escritor intimista; desagrada-lhe a ideia de ser tratado como
tal. O seu sofrimento é feérico, irreal, explode no escuro como uma batalha de
luzes, de clarões. Parece uma forma de rir. É uma forma de rir.»[8]
É impressionante, por
isso mesmo, o conflito de sentimentos de Kafka perante a possibilidade de vir a
ser um autor publicado: terror, desejo – «avidez», diz ele –, repugnância de
si. Se nos pusermos a mesma questão relativamente a Agustina, apenas conseguiremos
evocar a segurança, a ambição, a serenidade da escritora. Se Kafka foi, até ao
fim, a impossibilidade de ser
escritor, Agustina terá sido sempre a certeza
de ser escritora. Pelo menos assim nos aparecem estas duas improváveis
vidas paralelas.
Há, contudo, um segredo
paralelo nestes dois nomes tão dissemelhantes no género, no carácter e na
oficina. Coloquemo-nos a questão do autor que lê um outro escritor como se este
fosse um seu modo secreto de ser: não apenas um par, mas a própria encarnação
de uma persona literária que o
autor-leitor reconhece na sua sombra interior. É certo que Agustina leu
recorrentemente Kafka desde que o descobriu. Era aí movida pela curiosidade e
não pela escola buissonnière
que tantos autores lidos lhe terão dado. Nunca Kafka seria um mestre para ela.
Ele é outra coisa. Maior ainda, mas por isso tanto mais inquietante, já que
nele a consciência do escritor é uma sensibilidade incomportável perante a
vida. Lendo-o, Agustina foi reconhecendo a vida habitada por um segredo
indizível que tantas das suas personagens já manifestavam em comportamento e em
carácter. Na leitura, ela, com a curiosidade daquele que tem a absoluta
necessidade de um conhecimento ameaçador, foi espreitando uma habitação que
nunca poderia vir a ocupar ou a sentir como sua; uma arquitectura fascinante e
inquietante por cuja janela espreitou durante anos e anos, até sentir que lhe
conhecia os quartos e as divisões nunca pisadas. Via aí Kafka, e imaginava que
escritora seria ela própria no seu lugar. Todos os textos de kafkiana são essa tentação de menina que
espreita à janela e adivinha as silhuetas de uma vida literária que não é a
sua.
Também nós podemos
perguntar: que escritora seria Agustina se a publicação fosse para ela essa
repugnante tentação? Se a escrita fosse nela esse tecer obscuro do texto,
sempre incapaz de ser resolvido, mas sempre já completado nalgum plano
desconhecido? Na impossibilidade de afirmarmos que seria uma outra Agustina, a
escritora, ela seria aquela que experimentaria certamente uma outra vida
perante a escrita. Desde logo, Agustina capta em Kafka, sem pretender refazê-la,
essa experiência radical da escrita como vida interior. Nada de esotérico há
aí: apenas uma densidade gravitacional que quase impede o corpo de caminhar
direito. O Kafka alto que parecia nunca estirar os seus longos membros é o
espírito da aranha na literatura do século XX. Uma forma superior da paciência.
Jorge Leandro
Rosa
[1] Agustina
Bessa-Luís, Kafkiana, Lisboa,
Guimarães, 2012, p. 46.
[2] Id., ibid., p. 21.
[3] Id., ibid., p. 50.
[4] Id., ibid., p. 50.
[5] Id., ibid., p. 44.
[6] Se os
textos que constituem De Kafka à Kafka
vão de 1943 a 1968, Agustina dedica textos a Kafka (pelo menos os incluídos
nesta recolha) no período compreendido entre 1983 e 2005.
[7] Maurice Blanchot,
De Kafka à Kafka, Paris, Gallimard,
1981, p. 43.
[8]
Agustina, op. cit., p. 26.