segunda-feira, novembro 17, 2008

Anacoretas no fim da modernidade


Max Weber definiu a estrutura constritiva da modernidade burocrática como stahlhartes Gehäuse, «Uma concha de aço», uma «concha dura como o aço». O aço, ao contrário da célebre tradução de Talcott Parsons, «the iron cage», é emblemático da modernidade e o ser humano é parte da sua matéria. A concha weberiana evoca, precisamente, essa ambígua situação do sujeito moderno na sua relação com o mundo: encapsulado na sua própria produção material, ele é também objecto de uma metamorfose, como a crisálida no casulo. Olhando mais de perto, o mundo deste sujeito é segregado pela sua própria actividade e encerra uma produtividade mais profunda e mais oculta, que parece ser de ordem ontológica. Esta produtividade, que não se traduz em índices económicos, não é uma produção verificável, mas ocorre fora do domínio visível deste mundo. E ocorre tanto mais quanto a actividade de transformação do mundo que produziu o aço do casulo se autonomiza, através de processos informacionais (que Weber chamaria burocráticos), e pode continuar sem ter necessidade do nosso entusiasmo. O «estranhamento do mundo», como diria Sloterdijk, pelo menos o actual, assenta num trabalho dedicado a esse mundo, o estranhamento vem do próprio trabalho, habita-o já, mas só será percebido quando o desinvestimento no sentido do mundo for percebido como possível a partir do casulo.

É a partir desse «trabalho do casulo» que entendemos a fenomenologia do «conforto» e da sua relação com o espaço exterior, que Peter Sloterdijk desenvolve em vários dos seus livros. Esta insere-se na teoria das esferas que Sloterdijk desenvolve na trilogia de Sphären, assim como em alguns outros livros que gravitam em torno desses. Trata-se de uma analítica alargada da instalação de mecanismos imunitários que substituem a metafísica na sociedade moderna. Todo o processo moderno parece ter sido dirigido pela vontade de fazer do mundo um lugar ao abrigo do desgosto gnóstico, como se a crise do fim do mundo romano estivesse ainda, de alguma forma, na memória cultural do mundo moderno.

Sabemos o que se passou quando a condição helénica passou a designar, no tempo de Alexandre, não o nascituro mas todo aquele que, pela educação, podia passar do mundo bárbaro à esfera helénica. A paideia, que aqui se transformava também, passa a aplicar-se à racionalidade comum aos humanos, o que significa que o problema central já não é, como em Platão ou Aristóteles, a polis, mas antes o kosmos, que nessa época passa a ser designado como «a verdadeira e grande polis para todos»[1]. Como escreve Hans Jonas, o grande estudioso do mundo gnóstico, referindo-se ao mundo helénico prestes a desaparecer, «ser um bom cidadão do kosmos, um kosmopolités, tal será o objecto moral do homem. O título que confere esse direito será, tão somente, a posse do logos, ou da razão. Este princípio distintivo faz dele um homem e coloca-o em relação directa com o princípio que governa o universo»[2]. O que os cosmopolitas não previram foi a subsistência das pulsões de abrigo nesse novo contexto.

Houve, em manifesto paralelo antigo com a concha de aço weberiana, uma mobilização anacorética que se difundiu entre os próprios cristãos nos século IV e V e que pertence ao mesmo turbilhão religioso do fim do Império: Simeão, o estilita praticou-a do alto da sua coluna durante 37 anos. Ao colocar-se sobre uma coluna, mas não querendo ser glória deste mundo, Simeão torna-se um ser prototípico da reunificação ontológica. Ainda não estamos aí na sociedade dos «perfeitos» cátaros, pelo que a única coisa perfeita é a demonstração levada a cabo pelo santo do que seja um corpo místico: é um corpo impossível já que, não pertencendo a este mundo e nele sendo inútil, não deixa de pertencer inteiramente à metáfora do abandono da carne que ele próprio produz. No alto da sua coluna, Simeão está plenamente na sua bolha, como diria Sloterdijk: está num processo de intersecção protegida. Intersecção dentro de si mesmo entre o ser pneumático, o que lhe resta do sopro original, e o seu Deus, que é esperado na solidão exposta e contudo secreta da pequena plataforma. No fundo, a bolha manifesta, claramente, a inutilidade de tentar deixar este mundo. Ou é, simplesmente, a suspensão desse esforço inútil. Paradoxo já plenamente gnóstico: o ser isola-se no mundo a fim de encontrar esse Outro que aí é absolutamente clandestino. Todos deverão ver a ânsia do encontro, mas ninguém neste mundo pode testemunhar o próprio encontro. Mesmo o encontro interior, se ocorre, está mais próximo da morte do que de qualquer outro evento do mundo: em ambos, o movimento essencial torna-se opaco para os olhos mundanos. A gnose será extremamente produtiva deste ponto de vista: ela produzirá aqueles que terão sido, provavelmente, os primeiros individualistas da História: indivíduos plenamente convencidos da inutilidade de qualquer transmissão da experiência. Para estes, místicos que foram exilados num mundo privado da fonte divina, toda e qualquer situação exime-os da solidariedade com vista a fins mundanos, já que nada aí pode frutificar que não se converta em fruto ilegítimo do demiurgo. Ela desembocará, logicamente, na rejeição da teologia trinitária que mediatiza a díade Deus-alma.

A pergunta que devemos colocar-nos, a única pergunta com relevância, é a que visa saber qual a natureza da inutilidade que alimenta os novos anacoretas: suspeitamos que ela seja, pura e simplesmente, a inutilidade de se tentar pertencer a este mundo: todos os esforços patéticos que vemos à nossa volta são a imagem suspensa dessa inútil pertença. Onde está o Simeão novíssimo capaz de no-lo demonstrar?


[1] JONAS, Hans (1970), La Religion Gnostique, p. 23.

[2] JONAS (1970), p. 23.