quinta-feira, janeiro 01, 2009

REAVER/VER



O presente não é senão a parte de não-vivido que existe em todo o vivido, e o que impede o acesso ao presente é precisamente o conjunto do que, por uma razão ou por outra (o seu carácter traumático, a sua demasiada proximidade), nós não conseguimos viver nele. A atenção a este não-vivido é a vida do contemporâneo.
Giorgio AGAMBEN, Qu'est-ce que le Contemporain?, Payot, 2008
(tradução de Vítor Oliveira Jorge, trans-ferir.blogspot.com )

O acesso ao presente é um procedimento existencial que se tornou particularmente problemático na modernidade tardia. O presente, que hoje é confundido com a «presença», multiplicou-se naquilo que ele tem de vivido em modo de «diferimento», o que quer dizer que o presente se transformou numa categoria carregada de múltiplas presenças que só o são na medida em que acedem a alguma vivência, a qualquer presença capaz de se dizer «operatória», como quem dizia antes «consciente» ou «viva».
Sendo assim, o não-vivido, que é, segundo Agamben, a matéria que liga a vivência à contemporaneidade, dissemina-se muito para além daquela que era a sua disseminação primeira, a do recalcamento, onde podia ser reavido por um acto de renúncia à consciência apropriante do sujeito. O não-vivido, podemos dizê-lo, faz-se circuito indispensável que serpenteia entre as presenças diferidas das redes. Desse modo, se todo o presente estava disponível para ser reencontrado nessa zona de profunda improdutividade, ele é agora constantemente reenviado à presença e à sua produtividade inerente. Era renunciado ao imperativo da presença (da telepresença) que podíamos estabelecer uma consciência da contemporaneidade.
Digamos que o gesto de reaver, só possível pela renúncia, passou a ser curto-circuitado pela acção do reenvio. Fica a pergunta: o que distingue uma vida que reouvemos de uma vida que reenviámos?