Morreu Véra Saudková. O nome poderá não evocar nenhuma referência, mas os kafkianos saberão que era a última parente próxima de Kafka, neste caso, sua sobrinha. Filha de Ottla, a irmã mais querida. Ah! Ottla! Exclamarão os leitores apaixonados de Kafka. Sim, a Ottla que acolheu o irmão durante os oito meses passados em Zürau, esses magníficos e tristes meses em que Kafka escreverá em folhas soltas os chamados «Aforismos de Zürau», cento e três folhas de papel frágil, mais precisamente. Estas, numeradas pelo punho do escritor, eram escritas a par do seu trabalho nos «cadernos in-octavo», nos quais alguns dos «aforismos» foram transcritos.
Ler os «aforismos» é uma tarefa infinita, como já tentei exprimir noutro lugar. Mas há igualmente a correspondência com Ottla, tão distinta daquelas mantidas com Milena ou com Felice. Cartas comoventes que revelam um Kafka que se interessa vivamente pela existência material no pequeno domínio agrícola que a irmã administrava. Como disse André Manssel, nada do que pertence à existência é mesquinho, desinteressante ou secundário em Kafka. A mais humilde das inquietações ganha nessas linhas uma força e uma evidência que só à verdade pertencem. Tenho, aliás, a intuição de que Kafka renova a literatura do século XX, não pelo retrato do totalitarismo, mas antes pela libertação de uma força de verdade no mínimo dos gestos quotidianos.
Véra Saudková foi entrevistada, como tantos outros sobreviventes do Holocausto, pela Shoah Foundation. Chamo a atenção para o último minuto deste excerto, um momento onde a ternura se funda numa tristeza infinita. Véra evoca o momento em que, já durante a guerra, as irmãs de Kafka recebem os primeiros direitos de autor que haviam herdado e que lhes eram devidos pelo início das edições internacionais da obra do irmão. E recorda: «Juntas, com as lágrimas nos olhos, exclamaram: "Então, o nosso Franz era um escritor!". E foram [levadas] para o transporte». Literal ou simbolicamente, este seria o último transporte, aquele que as levaria a Theresienstadt e, logo depois, a Auschwitz.
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