A Ideia é uma revista de cultura e pensamento que se publica desde 1974. É uma revista anarquista, escrevo-o de forma altissonante. É a revista com que a cultura e o pensamento anarquistas, com mais de um século de presença em Portugal, marcaram a vida cultural e política deste país. É também a demonstração da plasticidade do pensamento libertário, da sua liberdade diante do século ideológico que passou e da sua inventividade diante daquele que começa. Tem sido, nestes quarenta anos, uma das melhores revistas que se publicam em português.
Inicialmente, e durante muitos anos, coordenada por João Freire, um dos raros espíritos livres que enquanto tal atravessaram todas as circunstâncias, é agora editada por António Cândido Franco, amigo querido de muitos percursos -- combates pela ecologia, a não-violência, a defesa da objecção de consciência, os projectos comunitários, a cultura e a vida literária -- a quem endereço daqui uma palavra de reconhecimento pela sua constante fidelidade a esse laço essencial entre a vida do espírito e a presença política e cívica que tão raro se fez na vil existência habitual da nossa sociedade.
O António deu-nos, sem pré-aviso, uma Ideia magnífica, certamente à sua imagem, ou seja, cavaleiresca, poética e rigorosa, no seu número anterior, publicado em Novembro de 2013. São 290 páginas onde o Surrealismo em língua portuguesa é revisitado, entretecido em registos vários, libertado dos mantos vários com que a história da literatura e as perspectivas didácticas o cobriram. De súbito, tudo é fresco nestes setenta anos de presença surrealista! Aqui, não há «grandes» e «pequenos» autores e artistas: frequentemente, os testemunhos recolhidos, os inéditos, as imagens privadas, deixam perceber que as aventuras quase desconhecidas são as mais belas! Tudo nessas páginas estremece ainda por dentro das emoções que adivinhamos neste entendimento das artes como gestos vivos.
Colaborei com A Ideia desde 1984, se não estou em erro. Escrevi sobre os autores que, em cada momento, eram aqueles que mais amava e que mais me libertavam da circunscrição a mim próprio: Blake, Jünger, as poéticas índias, Gary Snyder. A este último devo muito. Devo-lhe «um lugar no espaço», que é talvez o único lugar a que vale a pena aspirar. Então, leitor ávido da Beat generation, a descoberta de Snyder -- autor que em muito extravasa essa filiação -- foi para mim a revelação de uma poética do essencial e do vivo. Através de uma poética e de uma ética que bebem no Budismo, nas tradições poéticas ocidentais e ameríndias, na ecologia que tem as suas raízes no velho anarquismo americano, Snyder fez-me aceder a novas ligações, essas que voltam sempre a encontrar-me quando viro uma esquina da vida. Regresso a ele, por convite do António, trinta anos depois. Regresso ao contacto com esse «concílio de todos os seres», a esse concelho da terra viva, reunido nas palavras. Com um breve texto, «Para um povoamento da vida poética», dou um modesto e marginal contributo ao grande concílio que A Ideia volta a celebrar no seu último número, agora publicado. O António regressa ao surrealismo português, desta vez nas suas manifestações em torno do café Gelo. É o número 73-74, naquela que parece ser a nova periodicidade anual da revista. Entre o Surrealismo e Gary Snyder há uma linhagem que é profunda e na qual poderemos ler certos momentos de explícita aproximação, começando pelos textos que André Breton dedicou às artes dos índios norte-americanos no período do seu exílio, mas onde também serão de compulsar os textos de Artaud e René Daumal. E, como o António aqui lembraria, naqueles de um Pascoaes. Não são todas perspectivas idênticas, mas ecoam no mesmo amor e na mesma transgressão das arrumações literárias.
A Ideia é lançada neste 13 de Dezembro, Galeria Abysmo, Rua da Horta Seca, n.º 40 r/c., em Lisboa.