sexta-feira, agosto 01, 2008

Mutação dos dispositivos


«Existem duas categorias [no ser]: os seres vivos (ou substâncias) e os dispositivos. Entre estas, e como terceiro elemento, os sujeitos. Chamo sujeito àquilo que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo-a-corpo entre os vivos e os dispositivos. Naturalmente, como na antiga metafísica, as substâncias e os sujeitos parecem confundir-se, mas não completamente. Por exemplo, um único indivíduo, uma única substância, podem ser a sede de vários processos de subjectivação: o utilizador de telemóveis, o internauta, o autor de narrativas, o apaixonado pelo tango, o militante antiglobalização, etc. Ao desenvolvimento infinito dos dispositivos do nosso tempo corresponde um desenvolvimento igualmente infinito de processos de subjectivação».
Giorgio AGAMBEN, Che cos'è un dispositivo?, pp. 32-33
(obra traduzida pelo autor deste blogue)

Parece claro que, a par da linguagem, a casa será talvez o mais antigo dispositivo. Tal como nos deixámos prender quase inadvertidamente naquela, também a casa (simultaneamente enquanto função arquitectónica e enquanto metáfora) se foi impondo como dispositivo omnipresente. A sua capacidade para manipular e distribuir relações de força encontra-se aparentemente diluída na cidade pós-moderna, no seu aparente ecletismo, na sua festividade. Mas é precisamente aí que a casa se revela um dispositivo cada vez mais vorazmente apetecido pelas dinâmicas de subjectivação evocadas por Agamben.

O aparelhamento que uma casa hoje fornece - dispositivo ele próprio ramificado em inúmeros outros dispositivos - não parece reflectir algumas das significações sólidas que lhe estavam historicamente associadas, quer sejam jurídicas, militares ou simbólico-genealógicas. A casa reflecte a docilidade política dos sujeitos, a sua amnésia cultural e a sua dispersão psíquica. A casa actual é uma casa económica (coisa que sempre foi) num sentido hipertrofiado. Serve uma economia polimorfa que atravessa o corpo, os objectos, o tempo vivido e as escalas imaginárias dos seres vivos.

A casa é, cada vez mais, o lugar do trabalho na medida em que, precisamente, deixou de ser um dispositivo de negociações entre economia doméstica (da «casa») e economia urbana. Ao deixar de sê-lo, a casa torna-se (à semelhança da linguagem) dispositivo de dispositivos, aparelhamento multiforme que tanto se orienta para o interior orgânico dos habitantes como o exterior inorgânico. Em consequência, a casa torna-se (mais) um dispositivo mutante, em si mesmo ilegível para as lógicas urbanísticas que não sejam apenas as que servem as redes de fluidez dos transportes físicos e das trocas imateriais.

Relembrando o tema que abriu este blogue: toda a casa comemorativa é hoje entendida como uma máquina demasiado sólida, sobretudo se pensarmos que ela evoca constantemente, a categoria do histórico. Contudo, esta é amplamente recuperável para a economia contemporânea se nela fizermos irromper o princípio que rege um outro dispositivo como o telemóvel: o tempo passa aqui a ser um processo de espacialização incessante. Tópica voraz, impossibilidade de profanar a fundação no tempo porque o tempo histórico já não é aquilo que se manipula aí.