quarta-feira, dezembro 30, 2009

O que acontece


Há mais de setenta dias que não publico no Testemunho. Poderia ter sido o próprio tempo a recusar um traço nesta página. Poderia ter sido a indiferença que o tempo esconde, a lenta procissão do esquecimento de si. Poderia, também, ter sido a pura mobilidade da inscrição a deslocar-se para outras paragens. Muito do que poderia ter sido parece adequar-se à ausência de inscrição, da mesma forma que vivemos segundo pequenas hesitações que nunca chegam inteiramente à consciência.

Mas há acontecimentos que procedem como se o mundo não pudesse deles guardar memória, obrigando o corpo a oferecer-se e a expor-se. Como se, aí, nada tivesse superfícies onde se detenha o que veio, razão pela qual o que vem continua a vir de encontro a nós, a subir por nós, a estreitar-nos e a morder-nos. Aquilo que vem forma, evidentemente, essa estranha simultaneidade do nascer e do morrer de que falava Jankélévitch. O que vem, precisamente porque abre um mundo onde toda a inscrição estremece nessa palpitação, se dilui e deixa ferida, desloca-nos para uma situação tomada pelo irreconhecível. Essa vinda tem um nome conhecido e abusado: o amor.

Se, imprevisivelmente, a vida atravessa este acontecimento, não podemos, ainda assim, dizer que ele é fenómeno pertencente à vida. O seu trabalho, a sua marca, revela a insuficiência da vida, a inutilidade de toda a previsão feita a partir dos pressupostos desta. E o que vem assim não se confunde com o que pressupúnhamos como adequado ao sentido. O que assim acontece vem intratável e mostra-nos a sua boca. Há que oferecer-se à mordedura, ao «horror e à maravilha», como dizia Pavese. Só lentamente a vida vai recuperando os seus direitos. Só a pouco e pouco voltamos a acreditar que há algo da vida capaz de inscrição.

O que é mais estranho é o facto do desejo de inscrição também se tornar urgente. Há que aproveitar para renovar toda a escrita: os pigmentos usados, a matéria sulcada pelos estiletes, a gramática comum. Esta nova inscrição deve ir ao fundo do corpo, deixando que a tinta alastre nos tecidos, liquefazendo as vozes, abrindo os ossos a novas configurações do abrigo. O que assim vem, e que não pode ter direcção porque não age no mundo, deve tomar um nome.

Só o teu nome define agora uma correspondência entre a linguagem e o acontecimento. Esse nome, que é voz carnal do som, que é o sopro cuja direcção desconheço, é o inventor do amor. De cada vez que te chamo, todo o meu ser se deixa tomar por uma língua que balbucia ainda.