Sendo mais um dos muitos filmes produzidos no circuito mainstream americano, mesmo que acima da média em termos de qualidade cinematográfica, No coração da escuridão terá tido uma recepção que não assinalou no filme nada de muito singular, com excepção da finura cinéfila nele exibida pelo seu realizador. Os nossos críticos foram «cegos» ao seu sentido ecológico, aí traduzido com particular sensibilidade e consciência da situação actual, razão porque aqui apresento uma breve nota de visionamento dirigida aos leitores com preocupações ambientais, cinéfilos ou não.
Fui há dias ver o filme de Paul Schrader, First Reformed, cujo título português, «No coração da escuridão», como já é tradição entre nós, torna genérico o que tinha ressonâncias bem precisas. «First Reformed» é a designação de uma velha Igreja reformada de origem holandesa, hoje quase vazia, que está ao cuidado do pastor Ernst Toller. Quase transformada em espaço museológico, parece um memorial de um tempo em que o Homem habitava um mundo que fazia sentido. Se o mal-estar de Toller já emergia do seu passado pessoal, ele encontrará na mudança climática uma avassaladora vivificação do seu sofrimento e interrogações. É essa a grande força do filme: longe de encerrar o acontecimento climático no discurso hesitante ou casuístico que lhe tem sido geralmente dedicado, ainda uma espécie de fenómeno «à parte» no âmbito ambiental, Schrader deixa-o percorrer o filme, dando a ver a força disruptiva com que ele nos atinge hoje, a estranheza que nos traz, a denegação que o acompanha em grande parte da sociedade.
Todo o filme é percorrido pelo fundo da presente degradação ambiental, de que a mudança climática aparece como uma epifania que atinge Michael e Mary, o casal ecologista, e Toller, o pastor. A epifania dá-se quando o entendimento de um fenómeno já presente ascende ao estádio da compreensão súbita. Michael e Mary partilham as mesmas convicções, como ela diz, mas estas, no seu estádio epifânico, desembocarão no suicídio daquele e na maternidade desta. Não preciso de explicitar mais longamente o quadro simbólico dado pelo nome da personagem. O pastor Toller, por seu lado, aniquilado desde a morte do filho no Iraque, só poderá experimentar o regresso à vida na súbita compreensão da convergência dos desastres ambientais. Esta pluralidade epifânica parece-me ser uma excelente forma de traduzir o carácter aparentemente abstrato e contudo violentamente concreto da mudança climática extrema. Aspecto notável: através de subtis indicações cénicas (como a secretária e o computador de Michael), percebemos que o filme não centra a sua visão da mudança climática nas teses que a entendem como fenómeno distendido no tempo: ela habita o presente e transforma agora o mundo que julgáramos conhecer.
A mudança climática é um despertar de forças e elementos que nos envolvem, uma espécie de fenómeno sintético de todas as agressões humanas ao planeta. Mergulhados nelas, longamente esquecidos da sua presença e potência, vemo-la chegar de todo o lado sem percebermos inteiramente a nossa nova condição e o fim de um mundo que julgáramos minimamente estável. First Reformed é o oposto do clássico filme-catástrofe, onde uma ameaça pontual irrompe subitamente sobre as nossas cabeças. Aqui, a ameaça está já entre nós, é parte de um presente que quase todos tentam contornar ou mesmo ignorar. E há um conluio entre empresas destrutivas e igrejas que delas recebem apoios. Como ser perturbado e habitado pela dúvida, Toller isola-se na sua Igreja-Museu, adquirindo assim um recuo notório em relação à hipocrisia da sociedade à sua volta. A mudança climática é a ameaça ambiental última: concretiza os nossos piores receios perante as agressões contínuas ao ambiente; reúne-as numa nova entidade cuja escala parece ultrapassar-nos. Precisamente por isso – e o filme não o esquece – a condição do activista ambiental torna-se particularmente difícil: nunca como hoje tivemos tanta informação sobre o percurso catastrófico das nossas sociedades (na casa de Michael todos os gráficos afixados na parede são bem identificáveis e reais, incluindo a curva exponencial do CO2, verdadeira fotografia do nosso tempo); nunca como hoje as ameaças se entrelaçam umas nas outras ao mesmo tempo que a sociedade escolhe maioritariamente a fuga em frente.
O pastor Toller, que logo na abertura do filme escreve o seu diário, seguindo o modelo clássico do filme de Bresson, Diário de um Pároco de Aldeia, não tem ainda o conhecimento desse processo, mas está preparado para algo de que não sabe ainda o nome. Perdeu o sentido da sua própria vida e ganhou a capacidade de ver o sentido do que acontece «atmosfericamente» à sua volta. Depois do suicídio de Michael, Toller apropria-se de um conjunto de elementos do percurso daquele: o computador, os documentos, o colete-bomba. Através do computador no qual Michael fizera a sua via crucis, Toller caminhará até ao mais fundo de uma situação aparentemente perdida. Esta transmissão é fundamental: não bastaria que Toller fosse procurar à rede as informações que tanto angustiavam Michael: é preciso um transporte comum porque se trata, não da partilha de informação (e os breves encontros entre ambos não tratam dela, mas da angústia e do espírito), mas da partilha de uma revelação. Este percurso quase «iniciático» do protagonista contém, a nosso ver, uma preciosa intuição do realizador: a informação sobre a mudança climática, hoje amplamente disponível, mas objecto constante de contra-informação (de que vimos em Portugal o último e desajeitado exemplo no jornal Dia 15, de Junho-Julho), não é um desencadeador suficiente da nossa acção. É necessário que ela venha acompanhada de uma reflexão, se não mesmo de uma introspecção, já que a sua significação é radical e põe em causa o modo como vivemos, o que para muitos equivale a pôr em causa o seu propósito na vida.
Situado na América do Norte, onde a mudança climática é ainda polémica, ficamos agradecidos pela aparição deste filme nas nossas longitudes europeias, onde, não aparentando ser polémica, a tecnocratização da questão pelo Acordo de Paris tem tido o condão perverso de a entregar às «forças do mercado» e à burocracia de Bruxelas. Enquanto isso, a população europeia vive embalada e infantilizada pelas promessas da economia circular e pela expansão contínua e delirante dos seus níveis de consumo. Neste quadro, as personagens de First Reformed podem parecer-nos tomadas por um excesso agónico incompreensível. Será, talvez, preciso ir lá onde Michael foi – seriam os campos de extracção por fracking? As areias betuminosas do Canadá? – e poder ver a nossa condição real. Mas tal não é estritamente indispensável. Se olharem os céus, não verão mas sentirão as correntes que se alteram e tudo expõem à resposta terrestre que não esperávamos. O que se segue será impossível não o ver ou sentir. Como neste Verão, singular como todos os que virão.
A mudança climática não é o pretexto deste filme: é o estado do nosso mundo.
(texto destinado à mailing list «Futuro-Terra»)