Conheci o Hugo recentemente, tendo, desse encontro, surgido um
primeiro diálogo. Logo depois, colocado perante estes trabalhos, senti um vivo
interesse pelo conjunto desta exposição. Quero colocar-me aqui, porque o
trabalho que me impressionou particularmente foi este [levanta-se da
cadeira, e aponta para a imagem com a tina de revelação a vermelho]. Curiosamente,
sempre entendi as imagens como entidades que prometem a própria chegada. Daí
que upcoming images constitua
verdadeiramente um título pertinente: algo que anuncia a sua chegada, essa
promessa que é o cerne de uma certa cultura da viagem no Ocidente. Essa cultura
tem uma história que o Hugo pensou e pôs diante de nós. O turismo não era
irrelevante quando queríamos atribuir sentido às nossas viagens. Tornou-se
irrelevante. Não creio, contudo, que essa irrelevância seja o tema destes
trabalhos. Vejo neles, pelo contrário, um plano da experiência que já passou
pelo que é significativo na deslocação turística, que já acedeu à irrelevância,
que já se decantou nela e já produziu, desse modo, um conjunto de imagens, ou
seja, de chegadas incumpridas. A nossa cultura reuniu, de modo singular, a
viagem e a imagem, formando assim uma espécie de impossibilidade compósita a
que nos fomos habituando. O turismo é, talvez, a história da nossa viagem para
a irrelevância civilizacional. E, quando falo de «imagem», faço-o no sentido de
uma poética que se disseminou e que se tornou fixação dorida do sonho do
viajante. Em última análise, o viajante que recusa a promessa vã da chegada
imagética deve levar a frustração da viagem até ao fim. Deve, creio, viajar por
dentro da própria imagem em que ele já se tornou. Eis a razão por que quero
aqui ler-vos um excerto de uma carta que resume esse sentimento que tive quando
encontrei este mupi do Hugo. Vou
traduzir do francês ao mesmo tempo que leio, por isso peço desculpa pelas hesitações.
“Querida mamã. Recebi as duas meias e a
vossa carta, recebi-as em circunstâncias muito tristes. Vejo aumentar a
inflamação do meu joelho direito e a dor na articulação, sem encontrar nenhum
remédio, nem nenhuma prescrição, no Harar estamos no meio dos negros e não há
lá europeus, decidi portanto partir. Era preciso abandonar os negócios, o que
não era fácil, pois eu tinha o meu dinheiro disperso por todo o lado, mas consegui,
por fim, liquidar quase tudo e pude partir. Desde há uma vintena de dias que me
permaneço deitado no Harar e na impossibilidade de fazer um único movimento, sofrendo
dores atrozes, e não conseguindo dormir. Aluguei dezasseis negros, negros
portadores, a cerca de quinze talares cada um do Harar a Zeïlah, fi-los fabricar
uma padiola coberta de lona, e foi deitado nela que acabo de fazer, em doze
dias, os trezentos quilómetros de deserto que separam os montes do Harar do
porto de Zeïlah. Inútil dizer-vos os terríveis sofrimentos durante o caminho,
não pude nunca fazer um único passo fora da liteira, o meu joelho inchava
visivelmente e a dor aumentava continuamente.”[1]
Esta é uma carta de Arthur Rimbaud, escrita no dia 30
de Abril de 1891, em Áden, cidade portuária do Iémen, onde se encontra
internado no Hospital europeu. Ela faz parte de um conjunto de mais de uma
centena de cartas hoje conhecidas de Rimbaud. Lamentavelmente, não traduzidas,
na sua maioria, em português, embora eu pense que elas fazem parte da obra rimbaudiana.
É certo que nos dez anos que passará no norte de África, frequentemente entre
Áden e Harar, na Abissínia, Rimbaud far-se-á comerciante e traficante. Em
fundo, contudo, entendo-o como o Rimbaud que fecha a obra poética e parte numa viagem sem fim. Não se fecha uma
obra poética impunemente: é uma perigosa afronta à morte, já que,
habitualmente, é esta que a encerra. Toda a restante vida de Rimbaud será um
confronto com a ruína, porque este é um homem que decidiu afastar-se
radicalmente da primeira metade da sua vida. É neste sentido que Rimbaud reúne
as duas vertentes do viajante ocidental: aquele que se insere na experiência
colonial e aquele que se desloca no desgosto da experiência que viveu. Este
desgosto – parece-me –, as imagens que o Hugo colocou no seu banho dão-no
magnificamente. Essa promessa inatingível da chegada encontramo-la toda aqui.
Todo o turismo é fruto do comércio deste desespero com as imagens interiores
por ele fabricadas.
Foi assim que, ao fim de um dia de reflexão, pude
perceber que o meu fascínio por esta tina cheia de postais remetia para uma
experiência turística – vamos chamar-lhe turística – muito precisa daqueles
ocidentais que viajam pelo mundo sem ser em razão de fins imediatamente
comerciais. Lendo a distribuição geográfica dos postais aqui liquidamente
visíveis, que vão desde o Magreb até ao Egipto e ao Iraque, toda essa linha do
mundo islâmico ao fundo do Mediterrâneo e que se prolonga até às portas da Ásia,
fui projectado para uma série de memórias literárias e culturais do que
chamarei um turismo desesperado. Eu não confundo, recuso-me a confundir, aquilo
a que hoje chamamos turismo, globalizado e produto de entretenimento, com o
turismo que os ocidentais fizeram durante séculos. Essa história turística dos
ocidentais, cujo arranque cultural vou situar na modernidade no século XVI, e
que para mim começa literariamente com um magnífico poeta francês, Joachim Du
Bellay, um dos primeiros turistas ocidentais que se dirige a Roma e escreve
sobre essa experiência. Ora, Roma no século XVI é essencialmente um campo de ruinas,
um local lamacento. Evidentemente a Igreja está presente, é o Estado papal,
mas, para onde quer que o turista se volte, há um campo de ruínas visível e há
um mistério na origem do próprio facto de se ser ocidental. E é isso que
fascina Du Bellay, é essa ruina, in sito
e in stato. Portanto, o turismo não é
na cultura ocidental uma viagem de prazer: o turismo é uma viagem de dor, de regret,
como diz Du Bellay, que os prazeres ocasionais da viagem vão suavizando. Com o Risorgimento, a Península transalpina
deixará de ser um cenário adequado a estes exercícios. É, então, naturalmente
que os olhares destes turistas se voltarão para o além mediterrâneo,
territórios recentemente aniquilados pela decadência e pelo colonialismo.
Esta viagem de confronto do eu, do confronto com a
própria cisão do eu, que já só se reconhece enraizado em ruínas prestigiosas,
vai adaptar-se maravilhosamente a estes territórios pouco povoados e desérticos.
O turista viaja com a própria insuficiência do ser ocidental, leva-a consigo e
projecta-a em locais onde a desagregação histórica ou natural atingiu um grau tal
que a insuficiência pode aí vicejar. O momento mais belo e terrível dessa
história do turismo ocidental será, para mim, a transição do século XIX para o
século XX. Rimbaud, evidentemente, persiste em dar-nos um sinal inaugural. Mas
é também nesses territórios que podemos situar uma escritora suíça magnífica,
que começou a ser traduzida em Portugal há poucos anos, Annemarie
Schwarzenbach, que exprime perfeitamente em textos como Morte na Pérsia[2],
este sentimento de ir ao encontro da morte, ir ao encontro de uma espécie de
revelação da luta com o eu. Não é ir ao encontro do próprio eu, não é ir ao
encontro da representação de si, é ir ao encontro precisamente da fragmentação
e dessa insuficiência que é, de alguma forma, a auto-consciência do autor, logo
do artista. Isso, que em Rimbaud é muito claro, torna-se em Schwarzenbach quase
insuportável. Oiçamos uma passagem da sua voz:
«É
ténue a fronteira que separa o desumano do sobre-humano, e a grandeza
desesperada da Ásia é sobre-humana: nem sequer hostil, apenas demasiado grande.
Na Ásia, que importância tem a morte de alguém? E, no entanto, não conhecemos
grito mais desesperado do que este: “Uma pessoa morre!» Não, nenhum falseamento
poderá libertar-me do meu fardo e aliviar o leitor»[3]
O quase meio século que separa um e outra não tem aqui
relevância particular: a grande diferença reside antes no facto de Arthur já
ter deixado para trás a aventura estética, enquanto Annemarie ainda a
transporta para o deserto, onde será duplamente calcinada no corpo e no
espírito. Já Rimbaud é todo carne no momento em que o encontramos esgotado pelo
seu turismo. O espírito reentrara há muitos anos nesse corpo refractário e
seco, próprio para as grandes travessias, mas sem recursos interiores, que
deixara no papel anos antes. Recordo, contudo, que Rimbaud possui um genuíno
olhar de turista, visível nas fotografias que foi tirando no seu périplo. Estas
parecem-nos comoventes e belas, sabendo nós de quem são. Contudo, o seu olhar,
a sua promessa incumprida de chegada, está muito próximo daquele que
encontramos nestes postais que o Hugo colocou no seu banho de revelação.
Há uma segunda parte da obra de Rimbaud que, para mim,
não está escrita a não ser em breves clarões nas cartas, mas que é essa vida
«dromedária», enigma do viajante que abandona toda a idealização do que
encontrará no caminho e que é, contudo, obra-vida
– como toma por título esta edição da obra de Rimbaud, que, por ser capaz de
assim dar conta da dupla viagem deste, me parece superior a todas as outras.
Terá Rimbaud abandonado a escrita para poder viajar? É pouco provável, já que a
sua poesia era já o anúncio dessa viagem e da sua necessidade de não-inscrição.
Evidentemente, falta-nos sempre o acesso à vida de Rimbaud, mas essa vida está
de alguma forma como indício do fracasso da condição humana. O ser humano é um
animal falhado. Eu diria que o turismo é a forma mais explícita de como essa
questão é hoje exponencialmente revelada na nossa condição. Porque há uma outra
história do turismo, ou uma pós-história deste: aquela que nós vemos hoje aqui
no Porto, o turismo que não é o turismo do confronto, mas que é uma espécie de
ilusão duma totalização do mundo, de uma harmonia e previsibilidade do mundo da
viagem. Nestas condições, a ilusão da viagem é um terrível logro: alimentada
como é pela promessa das imagens, a viagem turística é hoje tudo menos o que é
a viagem. É assim que essa dimensão do turismo hoje foi completamente ocultada,
o que provoca uma grave ilusão sobre a natureza da viagem. Não é por acaso que
os ocidentais, os europeus em particular – desprovidos de uma cultura da
viagem, de que os últimos testemunhos são aqueles que aqui evoquei – estão em
pânico com as migrações, reconhecendo nelas algo de hediondo, mas sem
referências culturais que lhes permitam compreendê-las. Os movimentos de
migração permaneciam ainda como memória profunda desses turistas desesperados.
E o seu desespero decorre da própria impossibilidade de se transformarem em
migrantes. O movimento de migração é um movimento de hominização desde o
Paleolítico. Portanto, o pânico face à migração é, sobretudo, o pânico perante
a possibilidade de termos imagens dessa hominização. Nós, pela primeira vez,
temos imagens dos movimentos migratórios, imagens praticamente em tempo real. Isso
produz um imenso pânico, porque a migração foi entendida por ocidentais como Du
Bellay ou Rimbaud como algo inacessível, marca do falhanço cultural da sua condição,
já que ela é o puro movimento do que faz o Homem. E, portanto, essa condição
humana em movimento parece-nos agora insuportável. Homens e mulheres como
Rimbaud, como Annemarie Schwarzenbach, vão à procura dessa dimensão essencial
do movimento, e por isso são turistas. Turistas magníficos, mas de qualquer
forma turistas.
Tentei explicar algo do meu fascínio perante este teu
belíssimo trabalho. Na verdade, a imagem da viagem permanece imersa no seu
banho de revelação. Ela é essa promessa por cumprir que a viagem não pode, por
si só, concretizar. O turismo é este banho em que o visível continuará
mergulhado.
[1] «Ma chère Maman, J’ai bien reçu vos deux bas et votre lettre, et je les ai reçus dans de tristes
circonstances. Voyant toujours augmenter l’enflure de mon genou
droit et la douleur dans l’articulation, sans trouver aucun remède ni aucun avis, puisqu’au Harar nous sommes au
milieu des nègres et qu’il n’y a point là d’Européens, je me décidai à descendre. Il fallait
abandonner les affaires : ce qui n’était pas très facile, car j’avais de l’argent dispersé de tous les côtés ; mais enfin je
réussis à liquider à peu près totalement. Depuis déjà une vingtaine de jours,
j’étais couché au Harar et dans l’impossibilité de faire un seul
mouvement, souffrant des douleurs atroces et ne dormant jamais. Je louai seize
nègres porteurs, à raison de 15 thalaris l’un, du Harar à Zeilah ; je fis
fabriquer une civière recouverte d’une toile, et c’est là-dessus que je viens de faire, en douze jours, les 300 kilomètres de désert qui séparent les monts du
Harar du port de Zeilah. Inutile de vous dire quelles horribles souffrances j’ai subies en route. Je n’ai jamais pu faire un
pas hors de ma civière ; mon genou gonflait à vue d’œil, et la douleur augmentait continuellement. […]». Arthur Rimbaud, Œuvre – Vie, Édition du
centenaire. Paris : Éditions Arléa, 1991, p. 811.
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