Embora ainda não tenha falado de música neste blogue, esta ocupa uma parte importante da minha vida. A música ao vivo, evidentemente, mas também, no quotidiano, a música gravada.
Tenho milhares de gravações musicais. Quase todas no domínio da chamada «música erudita», uma designação que hoje dá conta, não do suposto elitismo da tradição musical do ocidente, mas do triste estado em que se encontra a nossa cultura da fruição, já que é isso, precisamente, que a música é. A cultura musical é um prazer, tanto mais intenso quanto ele passa por uma afinação que o tempo, a escuta, a leitura, o diálogo e o próprio silêncio, fazem crescer. É certo que este, sendo um prazer completo e não apenas epidérmico, traz consigo elementos complexos, ambíguos e mesmo dolorosos. Mas todo o prazer estético é construído a partir de um espectro largo de aspectos da existência. Esse espectro abrange o prazer e a dor, a elevação e o ignóbil, o propósito e o inútil.
Na minha discoteca pessoal, tenho cerca de mil anos de música: do chamado período medieval às músicas contemporâneas. É pouco tempo, historicamente falando, mas é uma janela de referências abissal e quase infinita se tivermos em conta que, para a grande maioria das pessoas, a história da música se limita a alguns escassos anos de actividade da indústria musical de massas. Paradoxo decisivo do nosso tempo: a música está omnipresente na vida desperta dos cidadãos, toca em todo o lado e em todas as situações, mas a música tornou-se também a mercadoria cultural menos valorizada e mais banalizada de todas. Isto é um paradoxo porque, pelo menos desde o Romantismo, os melhores espíritos passaram o tempo a clamar que tínhamos música a menos, que as nossas sociedades burguesas eram dirigidas, no fundo, pelo temor da música, que fingiam cultivar sem a compreender verdadeiramente. O resultado, após os últimos cinquenta anos, em que os media se desenvolveram graças à música, é irónico.
Não me alargarei nestas considerações, que espero, um dia, desenvolver. Quero apenas apresentar algumas das gravações que adquiri mais recentemente e que me deram um tal prazer que me parece lamentável não o partilhar.
Começo pelo tipo de CD que nunca compro, mas que estando disponível a um preço ínfimo, decidi adquirir: a compilação vagamente temática e com fins turísticos, como depreendo. Musiques à Orsay foi editado pela Naïve em 2005. A grande maioria dos excertos compilados provém do catálogo naïve, mas há algumas excepções curiosas como a Ouverture da Gaîté Parisienne de Jacques Offenbach, aqui dirigida por Manuel Rosenthal num disco da Naxos que nunca me decidira a comprar, desconfiado dos estereótipos «Belle Époque» que lhe vinham colados. Afinal é uma interpretação fina e trepidante de vida, ao mesmo tempo!
Mais à frente, dois excertos de gravações dos anos sessenta que nunca tinha ouvido e que foram uma revelação siderante: duas canções, uma de Duparc, L'invitation au voyage (Baudelaire) e a outra de Fauré, Clair de lune (Verlaine), interpretadas pelo barítono Bernard Kruysen e pelo pianista Noël Lee, em gravações do fim do anos sessenta. Está lá tudo: sensibilidade, arte, contenção e emoção, elementos essenciais à mélodie francesa que eu sempre preferi procurar do lado do lied alemão.
Por fim, uma raridade que também desconhecia e que aqui descubro numa gravação recente: de Johann Strauss, em transcrição de Arnold Schönberg (Paris e Viena, o concerto burguês e a vanguarda!), a Kaiserwalzer para quarteto de cordas, flauta, clarinete e piano. Tocam o Quarteto Arditti, Michel Moragues, Paul Meyer e Michel Béroff.
Como disse, nunca compro este tipo de disco. Pelo contrário, tenho um gosto pronunciado pelas integrais, gosto que a situação da edição discográfica tem vindo a sustentar. Mas é verdade que a escuta da música nunca é um exercício de erudição musical, embora esta possa ampliar a sua qualidade. Encontrei este disco em Lisboa há alguns dias, semanas depois de ter estado no Museu do Quai d'Orsay. Nunca tinha tido oportunidade de visitar este museu, embora tivesse estado em Paris, com certa regularidade, nos anos oitenta e noventa. A arte da segunda metade do século XIX é, contudo, essencial para muitas das minhas preocupações relativamente à teoria da modernidade. Conheço bem o espólio do Museu, faz parte do meu «museu imaginário». E encontrei uma bela exposição: «Voir l'Italie et mourir. Photographie et peinture dans l'Italie du XIXe siècle», onde encontro certas imagens tardias do Grand Tour, como é o caso de daguerreótipos fascinantes através dos quais vemos a Itália da primeira metade e meados do século XIX, um mundo arcaico, mítico e estranho, captado nessa inquietante experiência que é a pré-história da fotografia.
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