quarta-feira, abril 09, 2014

O canto dhrupad


O canto dhrupad, que sofreu um ocaso durante o século XX, é hoje cultivado por nomes como Ustad H. Sayeeduddin Dagar. Este mantém viva uma tradição que vem dos Vedas, quer dizer, de uma cultura religiosa e artística do Neolítico. Escutamos a origem do que somos por herança indo-europeia. E escutamos algo da ressonância do Universo.

Tenho a gravação, em CD, do concerto dado na Basílica Sainte Marie-Madeleine de Vézelay, no dia 31 de Julho de 2005. Encontro-a agora nesse lugar de sombras chamado «You Tube». Tanto um suporte como o outro são pálidas evocações do que aí aconteceu. Se recordarmos o sentido védico das origens do canto dhrupad, poderemos, talvez, encontrar um lugar para a escuta.

Om Antanran Tom, Taarni Tom, Hananat Hariom Narayan, Hananat Hari Om.
«Ó Deus, estou perdido num mundo de trevas sem fim, ajuda-me a encontrar o caminho para dele sair.»


segunda-feira, abril 07, 2014

Tolstói e a cultura do livro








Neste mundo globalizado, onde o discurso sobre a disponibilidade da informação, a toda a hora e em qualquer lugar, é repetido com uma enorme ligeireza, haveria necessidade de nos interrogarmos sobre o que significam tais afirmações. É que a «informação» sempre esteve à nossa volta, a toda a hora e em qualquer lugar, pela simples razão das nossas existências decorrerem no mundo e de sermos «macacos gramáticos», como dizia Octavio Paz. Desde logo, a natureza é essa «informação» e qualquer cultura humana, da mais arcaica à contemporânea, sabe vivê-la. Suspeito mesmo que o mundo natural tenha sido, nas culturas do paleolítico, muito mais compreensível do que é hoje. A transição posterior entre dois planos culturais, da compreensão mítica para o legível, veio empobrecer a «informação» que pode ser vivida no contacto com aquilo que os ocidentais chamaram a «natureza». E, no entanto – dir-me-ão – nunca a ciência esteve tão próxima de decifrar os segredos da natureza, nunca tanta informação foi acumulada. Acontece que essa «decifração» não equivale a uma leitura integrada na natureza. Ela visa, mais do que nunca, explorar esse mundo como recurso, não uma sabedoria viva do mundo, não a sua constituição como gramática viva.


O que quero dizer é que, no mundo globalizado onde vivemos, a informação deixou de corresponder a uma cultura onde a natureza era o livro essencial. Deslocamos, portanto, o mundo. Refazemo-lo há já alguns milénios: pelo menos desde o aparecimento da escrita. Construímos ecologias culturais que vieram articular de outro modo as vivências e que são, também elas, sistemas frágeis que exigem tempo e respeito. Toda a cultura é frágil. Paralelamente, todo o processo de mudança aí ocorrido se aproveita dessa fragilidade para obter um ganho. É verdade que as culturas humanas – sobretudo na modernidade – admitem a transformação. Mas, na cultura globalizada de hoje, a transformação impõe-se a partir de um ponto de vista que se tem vindo a autonomizar dessa herança cultural. A possibilidade técnica é, aqui, uma outra possibilidade cultural. No entanto, todos podemos viver em diversos ecossistemas culturais e que só essa pluralidade de mundos faz sentido.


Haverá, assim, que ser cuidadoso quando falamos da disponibilidade universal dos textos, na sua circulação online. Um texto não é nunca, por si só, um livro. Deveremos perder os livros para dar a todos (todos os) textos? E o que acontece, aí, aos modos de compreensão? Temo que possa acontecer algo semelhante àquilo que se passou com os entes naturais quando saímos do mundo mítico. Não cabendo aqui introduzir a complexidade destes debates, quero apenas sublinhar, energicamente, a necessidade de preservarmos a cultura do livro, o seu ecossistema e o mundo de que ele é a habitação e o dédalo. Mesmo com o online. Mas sabendo que o online é hoje uma das expressões do poder e da sua fluidez. O poder de tornar irreconhecível aquilo que aprendêramos a ler.


A cultura do livro vai resistindo, embora mal, num país como Portugal, que passou quase directamente do mito para o online (creio ser esse o significado antropológico da modernidade portuguesa). Há um domínio no qual podemos verificar com clareza o estado da cultura do livro: a tradução. Esta foi sempre um parente pobre na edição em língua portuguesa. Há poucas traduções e muitas daquelas que existem são de má qualidade. Durante muito tempo, e na medida em que a circulação do livro se restringia a uma minoria que tinha acesso ao livro estrangeiro, esta questão foi menorizada como indicador civilizacional. Mas hoje, apesar do alargamento da escolarização, as pessoas já não lêem no original os livros «difíceis», aqueles que importam para essa cultura do livro. Ou procuram nas redes versões pouco fiáveis desses livros, em versão escrita num inglês pobre. Em breve, em tradução maquínica.


Em Portugal, onde quem está no ensino conhece o estado degradado da cultura do livro, deu-se, no início deste ano, um acontecimento inédito na edição, um acontecimento pasmoso, diria: tornou-se possível escolher entre duas traduções recentes de enorme qualidade de um livro do cânone ocidental, o Guerra e Paz de Lev Tolstói. Depois de versões traduzidas do castelhano e do francês, temos duas traduções feitas directamente do russo. Aquela de Nina e Filipe Guerra, publicada pela Presença e saída em 2005, e a de António Pescada, publicada agora pela Relógio d’Água. É excessivo? De modo nenhum! É o estado mínimo da nossa necessidade enquanto cidadãos que ainda dependem da ecologia do livro. Porque as palavras de Tolstói, que estão vivas em português, mudam connosco, seus leitores: «Entre as inúmeras categorias em que se pode dividir os fenómenos da vida, é possível destacar aquelas em que predomina o conteúdo e aquelas em que predomina a forma» (Guerra e Paz, livro III, Presença, p. 144). A forma, na existência do livro, é um aspecto fundamental deste: o livro permite afirmar e diferenciar uma presença. Ora, essa presença é laboriosa: no caso da tradução, ela tem uma história por detrás de si e surge no interior de uma metamorfose que é também a nossa. Mas é este exemplo de um caule vicejante indicativo de um adquirido irreversível? Infelizmente, não. Os mesmos Nina Guerra e Filipe Guerra tinham dado início, na Presença, em Julho de 2011, às Obras de Mikhaíl Bulgákov, publicando a tradução portuguesa de A Guarda Branca (1924). Desde então, não houve continuidade. Sublinho que Bulgákov é, tão só, o maior prosador do século XX russo. Precisamos urgentemente desse enxerto áspero e céptico na nossa língua literária.

Publicado em As Artes entre as Letras, nº 117, 26 de Fevereiro de 2014