Neste
mundo globalizado, onde o discurso sobre a disponibilidade da informação, a
toda a hora e em qualquer lugar, é repetido com uma enorme ligeireza, haveria
necessidade de nos interrogarmos sobre o que significam tais afirmações. É que
a «informação» sempre esteve à nossa volta, a toda a hora e em qualquer lugar, pela
simples razão das nossas existências decorrerem no mundo e de sermos «macacos
gramáticos», como dizia Octavio Paz. Desde logo, a natureza é essa «informação»
e qualquer cultura humana, da mais arcaica à contemporânea, sabe vivê-la.
Suspeito mesmo que o mundo natural tenha sido, nas culturas do paleolítico, muito
mais compreensível do que é hoje. A transição posterior entre dois planos
culturais, da compreensão mítica para o legível, veio empobrecer a «informação»
que pode ser vivida no contacto com aquilo que os ocidentais chamaram a
«natureza». E, no entanto – dir-me-ão – nunca a ciência esteve tão próxima de decifrar
os segredos da natureza, nunca tanta informação foi acumulada. Acontece que
essa «decifração» não equivale a uma leitura integrada na natureza. Ela visa,
mais do que nunca, explorar esse mundo como recurso, não uma sabedoria viva do
mundo, não a sua constituição como gramática viva.
O
que quero dizer é que, no mundo globalizado onde vivemos, a informação deixou
de corresponder a uma cultura onde a natureza era o livro essencial.
Deslocamos, portanto, o mundo. Refazemo-lo há já alguns milénios: pelo menos
desde o aparecimento da escrita. Construímos ecologias culturais que vieram articular
de outro modo as vivências e que são, também elas, sistemas frágeis que exigem
tempo e respeito. Toda a cultura é frágil. Paralelamente, todo o processo de
mudança aí ocorrido se aproveita dessa fragilidade para obter um ganho. É
verdade que as culturas humanas – sobretudo na modernidade – admitem a
transformação. Mas, na cultura globalizada de hoje, a transformação impõe-se a
partir de um ponto de vista que se tem vindo a autonomizar dessa herança
cultural. A possibilidade técnica é, aqui, uma outra possibilidade cultural. No entanto, todos podemos viver em
diversos ecossistemas culturais e que só essa pluralidade de mundos faz
sentido.
Haverá,
assim, que ser cuidadoso quando falamos da disponibilidade universal dos textos,
na sua circulação online. Um texto não é nunca, por si só, um livro. Deveremos
perder os livros para dar a todos (todos os) textos? E o que acontece, aí, aos modos
de compreensão? Temo que possa acontecer algo semelhante àquilo que se passou
com os entes naturais quando saímos do mundo mítico. Não cabendo aqui
introduzir a complexidade destes debates, quero apenas sublinhar,
energicamente, a necessidade de preservarmos a cultura do livro, o seu
ecossistema e o mundo de que ele é a habitação e o dédalo. Mesmo com o online. Mas sabendo que o online é hoje uma das expressões do
poder e da sua fluidez. O poder de tornar irreconhecível aquilo que
aprendêramos a ler.
A
cultura do livro vai resistindo, embora mal, num país como Portugal, que passou
quase directamente do mito para o online
(creio ser esse o significado antropológico da modernidade portuguesa). Há um
domínio no qual podemos verificar com clareza o estado da cultura do livro: a
tradução. Esta foi sempre um parente pobre na edição em língua portuguesa. Há
poucas traduções e muitas daquelas que existem são de má qualidade. Durante
muito tempo, e na medida em que a circulação do livro se restringia a uma
minoria que tinha acesso ao livro estrangeiro, esta questão foi menorizada como
indicador civilizacional. Mas hoje, apesar do alargamento da escolarização, as
pessoas já não lêem no original os livros «difíceis», aqueles que importam para
essa cultura do livro. Ou procuram nas redes versões pouco fiáveis desses
livros, em versão escrita num inglês pobre. Em breve, em tradução maquínica.
Em
Portugal, onde quem está no ensino conhece o estado degradado da cultura do
livro, deu-se, no início deste ano, um acontecimento inédito na edição, um
acontecimento pasmoso, diria: tornou-se possível escolher entre duas traduções
recentes de enorme qualidade de um livro do cânone ocidental, o Guerra e Paz de Lev Tolstói. Depois de
versões traduzidas do castelhano e do francês, temos duas traduções feitas
directamente do russo. Aquela de Nina e Filipe Guerra, publicada pela Presença
e saída em 2005, e a de António Pescada, publicada agora pela Relógio d’Água. É
excessivo? De modo nenhum! É o estado mínimo da nossa necessidade enquanto
cidadãos que ainda dependem da ecologia do livro. Porque as palavras de
Tolstói, que estão vivas em português, mudam connosco, seus leitores: «Entre as
inúmeras categorias em que se pode dividir os fenómenos da vida, é possível
destacar aquelas em que predomina o conteúdo e aquelas em que predomina a
forma» (Guerra e Paz, livro III,
Presença, p. 144). A forma, na existência do livro, é um aspecto fundamental
deste: o livro permite afirmar e diferenciar uma presença. Ora, essa presença é
laboriosa: no caso da tradução, ela tem uma história por detrás de si e surge
no interior de uma metamorfose que é também a nossa. Mas é este exemplo de um
caule vicejante indicativo de um adquirido irreversível? Infelizmente, não. Os
mesmos Nina Guerra e Filipe Guerra tinham dado início, na Presença, em Julho de
2011, às Obras de Mikhaíl Bulgákov,
publicando a tradução portuguesa de A
Guarda Branca (1924). Desde então, não houve continuidade. Sublinho que
Bulgákov é, tão só, o maior prosador do século XX russo. Precisamos
urgentemente desse enxerto áspero e céptico na nossa língua literária.
Publicado em As Artes entre as Letras, nº 117, 26 de Fevereiro de 2014