Conheci Dalibor há muitos anos. Peço-lhe desculpa por o nomear assim, ele que merece os seus apelidos. Conheci-o episodicamente. Angustia-me a
ambiguidade desta «reportagem» de uma estação «generalista» de
televisão. A televisão que devora tudo o que capta. A televisão é como a
cave de Hanta, a personagem imortal desenhada por Bohumil Hrabal em
«Uma Solidão demasiado ruidosa», um checo como Dalibor. Mas nela não há
ninguém que leia no meio da sujidade e da podridão. E isso vê-se e
escuta-se, apesar da superficialidade e voracidade desta «peça», como
também dizem.
Um «emprego» para Dalibor? Este homem não precisa de um emprego: é Portugal que deveria tratá-lo como um cidadão e alguém que nos honra, alguém que fala e lê melhor em português do que a grande maioria de nós! Por que razão um homem deverá ser medido pelo seu emprego? Naquela biblioteca de bairro, cujo espólio de livros não é particularmente rico (basta ver com atenção as estantes), Dalibor encontra um Portugal que já não é frequentado pelos portugueses. Dalibor vive num Portugal imaginário, que ainda ama os seus escritores, que ainda os discute, que ainda tem algum conhecimento do que é a vida da linguagem. O facto de Dalibor passar os seus dias a ler aparece como um toque de exotismo na banalizada «história por detrás do sem-abrigo». O sem-abrigo é uma «não-pessoa» e todas estas narrativas jornalísticas contêm sempre, no seu subtexto, a mesma concepção de um ser humano que deixou de ter biografia e se tornou o fantasma da sua própria vida. Dalibor, o fantasma que lê. A leitura como actividade de fantasmas e a biblioteca como espaço fantasmagórico (hoje, cada vez mais repleto de dispositivos electrónicos, para muitos a única coisa que lhe dá vida). Se alguém viu o mais recente programa sobre livros e literatura na RTP2, o tal canal do serviço público, encontrou precisamente esta necessidade de espantar o que há de fantasmagórico nas páginas dos livros: o silêncio que aí envolve as palavras, a brancura da página, a imobilidade, a renúncia à imagem. Espantam-se os fantasmas e espanta-se a vida interior, que é aquela vida a que o leitor aspira e que lhe permite, noutro momento, regressar renovado à vida exterior.
Dalibor vem de uma cultura da Europa central, sobre a qual quase nada sabemos. Aliás, em Portugal, nunca se sabe nada sobre as culturas europeias que não aquelas das potências dominantes. Outros checos se apaixonaram pela cultura e pela língua portuguesas ao longo do último século. A vida dos checos não foi, ao longo do século XX, mais fácil do que a dos portugueses. E os falantes do checo são infinitamente menos do que aqueles que falam português. Mas isso não os impediu de amar as culturas dos outros, de querer compreendê-las, vivê-las por dentro, tentar saber o que é ser um homem em mais do que uma língua. Dalibor é o embaixador dessa Checoslováquia que, tendo os seus maiores autores e pensadores proibidos, os viu descer às suas caves onde continuaram a escrever, a pensar e a ensinar. Actividades que, realizadas hoje à luz do dia em Portugal, parecem dissolver-se imediatamente no ar.
Um «emprego» para Dalibor? Este homem não precisa de um emprego: é Portugal que deveria tratá-lo como um cidadão e alguém que nos honra, alguém que fala e lê melhor em português do que a grande maioria de nós! Por que razão um homem deverá ser medido pelo seu emprego? Naquela biblioteca de bairro, cujo espólio de livros não é particularmente rico (basta ver com atenção as estantes), Dalibor encontra um Portugal que já não é frequentado pelos portugueses. Dalibor vive num Portugal imaginário, que ainda ama os seus escritores, que ainda os discute, que ainda tem algum conhecimento do que é a vida da linguagem. O facto de Dalibor passar os seus dias a ler aparece como um toque de exotismo na banalizada «história por detrás do sem-abrigo». O sem-abrigo é uma «não-pessoa» e todas estas narrativas jornalísticas contêm sempre, no seu subtexto, a mesma concepção de um ser humano que deixou de ter biografia e se tornou o fantasma da sua própria vida. Dalibor, o fantasma que lê. A leitura como actividade de fantasmas e a biblioteca como espaço fantasmagórico (hoje, cada vez mais repleto de dispositivos electrónicos, para muitos a única coisa que lhe dá vida). Se alguém viu o mais recente programa sobre livros e literatura na RTP2, o tal canal do serviço público, encontrou precisamente esta necessidade de espantar o que há de fantasmagórico nas páginas dos livros: o silêncio que aí envolve as palavras, a brancura da página, a imobilidade, a renúncia à imagem. Espantam-se os fantasmas e espanta-se a vida interior, que é aquela vida a que o leitor aspira e que lhe permite, noutro momento, regressar renovado à vida exterior.
Dalibor vem de uma cultura da Europa central, sobre a qual quase nada sabemos. Aliás, em Portugal, nunca se sabe nada sobre as culturas europeias que não aquelas das potências dominantes. Outros checos se apaixonaram pela cultura e pela língua portuguesas ao longo do último século. A vida dos checos não foi, ao longo do século XX, mais fácil do que a dos portugueses. E os falantes do checo são infinitamente menos do que aqueles que falam português. Mas isso não os impediu de amar as culturas dos outros, de querer compreendê-las, vivê-las por dentro, tentar saber o que é ser um homem em mais do que uma língua. Dalibor é o embaixador dessa Checoslováquia que, tendo os seus maiores autores e pensadores proibidos, os viu descer às suas caves onde continuaram a escrever, a pensar e a ensinar. Actividades que, realizadas hoje à luz do dia em Portugal, parecem dissolver-se imediatamente no ar.
«Uma manhã, os açougueiros trouxeram do talho um camião cheio de cartão e de papéis ensanguentados, caixas repletas do papel que eu não suportava porque tinha um cheiro adocicado e eu ficava todo cheio de sangue, como o avental de um talhante. Para me vingar, pus no primeiro pacote o Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdão, no segundo pacote depositei piamente Dom Carlos de Friedrich Schiller e, no terceiro pacote, para que o verbo também se transformasse em carne sangrenta, coloquei aberto Ecce Homo de Friedrich Nietzsche». HRABAL, Uma Solidão demasiado ruidosa, Afrontamento, Porto, 1992, p. 43.
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