Stefan Zweig é o último escritor do entre-guerras a acreditar numa Europa capaz de encontrar a salvação na
cultura. Essa crença iluminava, enlevava e enganava os seus leitores. Não há recepção na literatura europeia do século XX mais complexa do que esta. O Mundo de ontem. Memórias de um europeu, terminado já em 1941, meses antes do suicídio
no exílio, distingue-se das memórias de outros escritores de língua
alemã pela capacidade de reunir a alegria e o entusiasmo ao exercício
nostálgico. Mas no próprio objecto desse entusiasmo aparecem os sinais
da noite que cai sobre a Europa. Se alguém escutar aí um som de queda ou de fechamento semelhante
àquele que ouvimos hoje não o desmentirei.
O seu amigo Joseph Roth, também um judeu austríaco, é um caso ainda mais complexo, mas, se descontarmos o entusiasmo cosmopolita de Zweig, a sua escrita está embebida na mesma complexa reunião de sentimento desesperado e de lucidez. Roth mata-se mais depressa (Paris, 1939) e sem ter procurado ilusórias terras «do futuro» no Brasil. Ou, então, essa promessa era parte do contrato de Zweig com os seus leitores em todo o mundo ( e muito amplamente em Portugal), o seu entusiasmo profissional, sempre em combate com a lucidez, demónio secreto para um judeu que sabia ler o mundo nos anos 30, embora a sua fraqueza pelas civilidades do império bicéfalo o iludisse quase até ao fim. Precisamos hoje de um autor judeu como ele (não o digo por uma questão étnica, mas por razão de uma herança difícil de definir e que estaria tentado a definir como metafísica). Talvez um Imre Kertész seja esse autor, mas a sua voz está demasiado abafada pelo estrondo mediático do nosso tempo. Felizes Zweig e Roth, felizes apesar de tudo, que puderam escrever num tempo em que só ainda havia o fragor das bombas e a morte silenciada nos campos. Hoje, o terrível fragor da sociedade da comunicação impede-nos de ouvir as nossas bombas e os nossos próprios silêncios de morte.
«A juventude do
nosso tempo tinha a convicção de que algo de novo na arte ia acontecer,
e que esta se tornaria mais apaixonada, mais profunda e mais complexa
do que fora no tempo dos nossos pais. Contudo, fascinados apenas pelo
que se passava nesse domínio da actividade humana, não notávamos que
essas alterações estéticas apenas significavam o prelúdio de mais
profundas e extensas modificações, perturbando, de início, a ordem em
que os nossos pais viviam e, logo depois, destruindo o mundo e a sua
época de segurança.» in O Mundo de Ontem, Porto: Civilização, p. 93.
«Testemunho do estético» é um espaço dedicado às categorias estéticas da vida ou, como diria Valéry, àquilo que "se destaca da desordem comum do conjunto das coisas sensíveis". Visa, sobretudo, dar testemunho daquilo que está em movimento de de-formação, provocando um sobressalto simultaneamente íntimo e público. O valor estético, que toca igualmente o sensível e o secreto, convida a um outro modo de presença cívica.
segunda-feira, fevereiro 23, 2015
No aniversário do suicídio de Zweig, hoje visitado por Roth
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