quinta-feira, fevereiro 11, 2016

ULMEIROS FRONDOSOS E DESARRUMADOS


A Ulmeiro, como é conhecida, está em risco de fechar. É sina habitual das livrarias em Portugal. A Ulmeiro não era a minha livraria preferida, mas estava no número dos templos livreiros a que eu rendia culto na minha adolescência, que decorreu não muito longe dali. Nos comentários de leitores que acompanham a reportagem online do Observador, alguém pergunta se «isto é uma livraria ou uma arrecadação?» A resposta, evidentemente, é que é uma livraria na sua variante de alfarrabista. Uma livraria tem, mais ou menos desarrumada, este aspecto, para quem não sabe. Às pessoas que dizem estas coisas higiénicas e pequeno-burguesas pergunto se já viram alguma fotografia da Shakespeare&co, em Paris, nos tempos heróicos de Sylvia Beach. Ou se já percorreram as cidades com tradição cultural tendo tido o trabalho de procurar livrarias a sério.
As livrarias têm vindo a ser substituídas por umas «boutiques», para usar outra palavra em desuso, que vendem livros. Coisas com poucos livros, muito espaço de circulação e abundante ignorância sobre o reino mágico do livro. Quem gosta de livros tem sempre demasiados livros. As livrarias que gostam de livros têm demasiados livros. Mas estas livrarias desarrumadas por vocação precisam de leitores inusitados, aventureiros do livro, que gostam de percorrer as estantes, desarrumar pilhas de livros, até que ficam com algo simultaneamente surpreendente e esperado nas mãos. A Ulmeiro era também um viveiro pujante, já que foi também, durante muito tempo, editora. Comprei um bom número dos seus livros: recordo em particular a minha primeira edição das Primaveras Românticas do Antero. Juvenília significativa e íntima.
O livro não está a desaparecer, mas está a perder as subculturas e as contraculturas que o tornam sedutor e «aurático». A Ulmeiro vem directamente de uma certa forma de contracultura. Não era, a princípio (pelo menos assim me parecia), uma daquelas a que sou mais sensível, que a imaginação levava-me mais para a City Lights (livraria e editora, como aqui), em São Francisco. Um belo dia, contudo, a Ulmeiro ofereceu-me um presente que nunca esquecerei: levou lá o Lawrence Ferlinghetti, fundador da City Lights, de quem a Ulmeiro tinha publicado uma pequena selecção de poemas. Acabei a trocar correspondência com ele pedindo novas e o contacto do Gary Snyder, que nunca obtive. Como vêem, a Ulmeiro, quase sem querer, fez muito pelos sonhos deste rapaz de Lisboa. Não compreendo a pobreza desta reportagem, que não procurou estas histórias gloriosas: o jornalismo, quando toca hoje o livro e o seu universo, parece, desculpem-me a expressão, «o boi diante do palácio». Será porque já cresceu com as livrarias homeopáticas?
No bairro onde se encontra, a Ulmeiro era e é uma raridade. Rapaz, quando não podia ou não queria deslocar-me às grandes livrarias do centro da cidade ou aos alfarrabistas do Bairro Alto, era lá que ia para a aventura do dia. A Ulmeiro tem de continuar? Tem, enquanto este casal tiver forças. Já não têm a mesma energia, mas têm o gosto, vê-se bem. E estão no seu bosque de ulmeiros. Seria bom que outros ulmeiros fossem plantados na cidade.





quinta-feira, janeiro 28, 2016

O seguinte texto foi publicado no número de Janeiro de 2016 da revista Contemporânea. Corresponde, com excepção de algumas modificações com vista à sua publicação, à apresentação que proferi nos «Maus Hábitos, no espaço da exposição «Uma janela para alguma outra coisa» de Hugo de Almeida Pinho.



 Conheci o Hugo recentemente, tendo, desse encontro, surgido um primeiro diálogo. Logo depois, colocado perante estes trabalhos, senti um vivo interesse pelo conjunto desta exposição. Quero colocar-me aqui, porque o trabalho que me impressionou particularmente foi este [levanta-se da cadeira, e aponta para a imagem com a tina de revelação a vermelho]. Curiosamente, sempre entendi as imagens como entidades que prometem a própria chegada. Daí que upcoming images constitua verdadeiramente um título pertinente: algo que anuncia a sua chegada, essa promessa que é o cerne de uma certa cultura da viagem no Ocidente. Essa cultura tem uma história que o Hugo pensou e pôs diante de nós. O turismo não era irrelevante quando queríamos atribuir sentido às nossas viagens. Tornou-se irrelevante. Não creio, contudo, que essa irrelevância seja o tema destes trabalhos. Vejo neles, pelo contrário, um plano da experiência que já passou pelo que é significativo na deslocação turística, que já acedeu à irrelevância, que já se decantou nela e já produziu, desse modo, um conjunto de imagens, ou seja, de chegadas incumpridas. A nossa cultura reuniu, de modo singular, a viagem e a imagem, formando assim uma espécie de impossibilidade compósita a que nos fomos habituando. O turismo é, talvez, a história da nossa viagem para a irrelevância civilizacional. E, quando falo de «imagem», faço-o no sentido de uma poética que se disseminou e que se tornou fixação dorida do sonho do viajante. Em última análise, o viajante que recusa a promessa vã da chegada imagética deve levar a frustração da viagem até ao fim. Deve, creio, viajar por dentro da própria imagem em que ele já se tornou. Eis a razão por que quero aqui ler-vos um excerto de uma carta que resume esse sentimento que tive quando encontrei este mupi do Hugo. Vou traduzir do francês ao mesmo tempo que leio, por isso peço desculpa pelas hesitações.
“Querida mamã. Recebi as duas meias e a vossa carta, recebi-as em circunstâncias muito tristes. Vejo aumentar a inflamação do meu joelho direito e a dor na articulação, sem encontrar nenhum remédio, nem nenhuma prescrição, no Harar estamos no meio dos negros e não há lá europeus, decidi portanto partir. Era preciso abandonar os negócios, o que não era fácil, pois eu tinha o meu dinheiro disperso por todo o lado, mas consegui, por fim, liquidar quase tudo e pude partir. Desde há uma vintena de dias que me permaneço deitado no Harar e na impossibilidade de fazer um único movimento, sofrendo dores atrozes, e não conseguindo dormir. Aluguei dezasseis negros, negros portadores, a cerca de quinze talares cada um do Harar a Zeïlah, fi-los fabricar uma padiola coberta de lona, e foi deitado nela que acabo de fazer, em doze dias, os trezentos quilómetros de deserto que separam os montes do Harar do porto de Zeïlah. Inútil dizer-vos os terríveis sofrimentos durante o caminho, não pude nunca fazer um único passo fora da liteira, o meu joelho inchava visivelmente e a dor aumentava continuamente.”[1]
Esta é uma carta de Arthur Rimbaud, escrita no dia 30 de Abril de 1891, em Áden, cidade portuária do Iémen, onde se encontra internado no Hospital europeu. Ela faz parte de um conjunto de mais de uma centena de cartas hoje conhecidas de Rimbaud. Lamentavelmente, não traduzidas, na sua maioria, em português, embora eu pense que elas fazem parte da obra rimbaudiana. É certo que nos dez anos que passará no norte de África, frequentemente entre Áden e Harar, na Abissínia, Rimbaud far-se-á comerciante e traficante. Em fundo, contudo, entendo-o como o Rimbaud que fecha a obra poética e parte numa viagem sem fim. Não se fecha uma obra poética impunemente: é uma perigosa afronta à morte, já que, habitualmente, é esta que a encerra. Toda a restante vida de Rimbaud será um confronto com a ruína, porque este é um homem que decidiu afastar-se radicalmente da primeira metade da sua vida. É neste sentido que Rimbaud reúne as duas vertentes do viajante ocidental: aquele que se insere na experiência colonial e aquele que se desloca no desgosto da experiência que viveu. Este desgosto – parece-me –, as imagens que o Hugo colocou no seu banho dão-no magnificamente. Essa promessa inatingível da chegada encontramo-la toda aqui. Todo o turismo é fruto do comércio deste desespero com as imagens interiores por ele fabricadas.
Foi assim que, ao fim de um dia de reflexão, pude perceber que o meu fascínio por esta tina cheia de postais remetia para uma experiência turística – vamos chamar-lhe turística – muito precisa daqueles ocidentais que viajam pelo mundo sem ser em razão de fins imediatamente comerciais. Lendo a distribuição geográfica dos postais aqui liquidamente visíveis, que vão desde o Magreb até ao Egipto e ao Iraque, toda essa linha do mundo islâmico ao fundo do Mediterrâneo e que se prolonga até às portas da Ásia, fui projectado para uma série de memórias literárias e culturais do que chamarei um turismo desesperado. Eu não confundo, recuso-me a confundir, aquilo a que hoje chamamos turismo, globalizado e produto de entretenimento, com o turismo que os ocidentais fizeram durante séculos. Essa história turística dos ocidentais, cujo arranque cultural vou situar na modernidade no século XVI, e que para mim começa literariamente com um magnífico poeta francês, Joachim Du Bellay, um dos primeiros turistas ocidentais que se dirige a Roma e escreve sobre essa experiência. Ora, Roma no século XVI é essencialmente um campo de ruinas, um local lamacento. Evidentemente a Igreja está presente, é o Estado papal, mas, para onde quer que o turista se volte, há um campo de ruínas visível e há um mistério na origem do próprio facto de se ser ocidental. E é isso que fascina Du Bellay, é essa ruina, in sito e in stato. Portanto, o turismo não é na cultura ocidental uma viagem de prazer: o turismo é uma viagem de dor, de regret, como diz Du Bellay, que os prazeres ocasionais da viagem vão suavizando. Com o Risorgimento, a Península transalpina deixará de ser um cenário adequado a estes exercícios. É, então, naturalmente que os olhares destes turistas se voltarão para o além mediterrâneo, territórios recentemente aniquilados pela decadência e pelo colonialismo.
Esta viagem de confronto do eu, do confronto com a própria cisão do eu, que já só se reconhece enraizado em ruínas prestigiosas, vai adaptar-se maravilhosamente a estes territórios pouco povoados e desérticos. O turista viaja com a própria insuficiência do ser ocidental, leva-a consigo e projecta-a em locais onde a desagregação histórica ou natural atingiu um grau tal que a insuficiência pode aí vicejar. O momento mais belo e terrível dessa história do turismo ocidental será, para mim, a transição do século XIX para o século XX. Rimbaud, evidentemente, persiste em dar-nos um sinal inaugural. Mas é também nesses territórios que podemos situar uma escritora suíça magnífica, que começou a ser traduzida em Portugal há poucos anos, Annemarie Schwarzenbach, que exprime perfeitamente em textos como Morte na Pérsia[2], este sentimento de ir ao encontro da morte, ir ao encontro de uma espécie de revelação da luta com o eu. Não é ir ao encontro do próprio eu, não é ir ao encontro da representação de si, é ir ao encontro precisamente da fragmentação e dessa insuficiência que é, de alguma forma, a auto-consciência do autor, logo do artista. Isso, que em Rimbaud é muito claro, torna-se em Schwarzenbach quase insuportável. Oiçamos uma passagem da sua voz:
«É ténue a fronteira que separa o desumano do sobre-humano, e a grandeza desesperada da Ásia é sobre-humana: nem sequer hostil, apenas demasiado grande. Na Ásia, que importância tem a morte de alguém? E, no entanto, não conhecemos grito mais desesperado do que este: “Uma pessoa morre!» Não, nenhum falseamento poderá libertar-me do meu fardo e aliviar o leitor»[3]
O quase meio século que separa um e outra não tem aqui relevância particular: a grande diferença reside antes no facto de Arthur já ter deixado para trás a aventura estética, enquanto Annemarie ainda a transporta para o deserto, onde será duplamente calcinada no corpo e no espírito. Já Rimbaud é todo carne no momento em que o encontramos esgotado pelo seu turismo. O espírito reentrara há muitos anos nesse corpo refractário e seco, próprio para as grandes travessias, mas sem recursos interiores, que deixara no papel anos antes. Recordo, contudo, que Rimbaud possui um genuíno olhar de turista, visível nas fotografias que foi tirando no seu périplo. Estas parecem-nos comoventes e belas, sabendo nós de quem são. Contudo, o seu olhar, a sua promessa incumprida de chegada, está muito próximo daquele que encontramos nestes postais que o Hugo colocou no seu banho de revelação.
Há uma segunda parte da obra de Rimbaud que, para mim, não está escrita a não ser em breves clarões nas cartas, mas que é essa vida «dromedária», enigma do viajante que abandona toda a idealização do que encontrará no caminho e que é, contudo, obra-vida – como toma por título esta edição da obra de Rimbaud, que, por ser capaz de assim dar conta da dupla viagem deste, me parece superior a todas as outras. Terá Rimbaud abandonado a escrita para poder viajar? É pouco provável, já que a sua poesia era já o anúncio dessa viagem e da sua necessidade de não-inscrição. Evidentemente, falta-nos sempre o acesso à vida de Rimbaud, mas essa vida está de alguma forma como indício do fracasso da condição humana. O ser humano é um animal falhado. Eu diria que o turismo é a forma mais explícita de como essa questão é hoje exponencialmente revelada na nossa condição. Porque há uma outra história do turismo, ou uma pós-história deste: aquela que nós vemos hoje aqui no Porto, o turismo que não é o turismo do confronto, mas que é uma espécie de ilusão duma totalização do mundo, de uma harmonia e previsibilidade do mundo da viagem. Nestas condições, a ilusão da viagem é um terrível logro: alimentada como é pela promessa das imagens, a viagem turística é hoje tudo menos o que é a viagem. É assim que essa dimensão do turismo hoje foi completamente ocultada, o que provoca uma grave ilusão sobre a natureza da viagem. Não é por acaso que os ocidentais, os europeus em particular – desprovidos de uma cultura da viagem, de que os últimos testemunhos são aqueles que aqui evoquei – estão em pânico com as migrações, reconhecendo nelas algo de hediondo, mas sem referências culturais que lhes permitam compreendê-las. Os movimentos de migração permaneciam ainda como memória profunda desses turistas desesperados. E o seu desespero decorre da própria impossibilidade de se transformarem em migrantes. O movimento de migração é um movimento de hominização desde o Paleolítico. Portanto, o pânico face à migração é, sobretudo, o pânico perante a possibilidade de termos imagens dessa hominização. Nós, pela primeira vez, temos imagens dos movimentos migratórios, imagens praticamente em tempo real. Isso produz um imenso pânico, porque a migração foi entendida por ocidentais como Du Bellay ou Rimbaud como algo inacessível, marca do falhanço cultural da sua condição, já que ela é o puro movimento do que faz o Homem. E, portanto, essa condição humana em movimento parece-nos agora insuportável. Homens e mulheres como Rimbaud, como Annemarie Schwarzenbach, vão à procura dessa dimensão essencial do movimento, e por isso são turistas. Turistas magníficos, mas de qualquer forma turistas.
Tentei explicar algo do meu fascínio perante este teu belíssimo trabalho. Na verdade, a imagem da viagem permanece imersa no seu banho de revelação. Ela é essa promessa por cumprir que a viagem não pode, por si só, concretizar. O turismo é este banho em que o visível continuará mergulhado.







[1] «Ma chère Maman, Jai bien reçu vos deux bas et votre lettre, et je les ai reçus dans de tristes circonstances. Voyant toujours augmenter lenflure de mon genou droit et la douleur dans larticulation, sans trouver aucun remède ni aucun avis, puisquau Harar nous sommes au milieu des nègres et quil ny a point là dEuropéens, je me décidai à descendre. Il fallait abandonner les affaires : ce qui n’était pas très facile, car javais de largent dispersé de tous les côtés ; mais enfin je réussis à liquider à peu près totalement. Depuis déjà une vingtaine de jours, j’étais couché au Harar et dans limpossibilité de faire un seul mouvement, souffrant des douleurs atroces et ne dormant jamais. Je louai seize nègres porteurs, à raison de 15 thalaris lun, du Harar à Zeilah ; je fis fabriquer une civière recouverte dune toile, et cest là-dessus que je viens de faire, en douze jours, les 300 kilomètres de désert qui séparent les monts du Harar du port de Zeilah. Inutile de vous dire quelles horribles souffrances jai subies en route. Je nai jamais pu faire un pas hors de ma civière ; mon genou gonflait à vue d’œil, et la douleur augmentait continuellement. []». Arthur Rimbaud, Œuvre Vie, Édition du centenaire. Paris : Éditions Arléa, 1991, p. 811.
[2] Tod in Persien. Tradução portuguesa: Morte na Pérsia. Lisboa: Tinta-da-China, 2008.
[3] Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia, p. 15.

quarta-feira, agosto 12, 2015

Véra Saudková, sobrinha de Kafka

Morreu Véra Saudková. O nome poderá não evocar nenhuma referência, mas os kafkianos saberão que era a última parente próxima de Kafka, neste caso, sua sobrinha. Filha de Ottla, a irmã mais querida. Ah! Ottla! Exclamarão os leitores apaixonados de Kafka. Sim, a Ottla que acolheu o irmão durante os oito meses passados em Zürau, esses magníficos e tristes meses em que Kafka escreverá em folhas soltas os chamados «Aforismos de Zürau», cento e três folhas de papel frágil, mais precisamente. Estas, numeradas pelo punho do escritor, eram escritas a par do seu trabalho nos «cadernos in-octavo», nos quais alguns dos «aforismos» foram transcritos.

Ler os «aforismos» é uma tarefa infinita, como já tentei exprimir noutro lugar. Mas há igualmente a correspondência com Ottla, tão distinta daquelas mantidas com Milena ou com Felice. Cartas comoventes que revelam um Kafka que se interessa vivamente pela existência material no pequeno domínio agrícola que a irmã administrava. Como disse André Manssel, nada do que pertence à existência é mesquinho, desinteressante ou secundário em Kafka. A mais humilde das inquietações ganha nessas linhas uma força e uma evidência que só à verdade pertencem. Tenho, aliás, a intuição de que Kafka renova a literatura do século XX, não pelo retrato do totalitarismo, mas antes pela libertação de uma força de verdade no mínimo dos gestos quotidianos.

Véra Saudková foi entrevistada, como tantos outros sobreviventes do Holocausto, pela Shoah Foundation. Chamo a atenção para o último minuto deste excerto, um momento onde a ternura se funda numa tristeza infinita. Véra evoca o momento em que, já durante a guerra, as irmãs de Kafka recebem os primeiros direitos de autor que haviam herdado e que lhes eram devidos pelo início das edições internacionais da obra do irmão. E recorda: «Juntas, com as lágrimas nos olhos, exclamaram: "Então, o nosso Franz era um escritor!". E foram [levadas] para o transporte». Literal ou simbolicamente, este seria o último transporte, aquele que as levaria a Theresienstadt e, logo depois, a Auschwitz.

http://sfi.usc.edu/content/v%C4%9Bra-saudkov%C3%A1-her-uncle-franz-kafka-0

sexta-feira, julho 03, 2015

A inteligência biográfica





(Recensão de Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Guimarães, Lisboa, 2012. Publicada em As Artes entre as Letras, números 148 e 149, Junho de 2015)



1.
Os textos biográficos – particularmente aqueles dedicados a homens e mulheres que escreveram – são salomónicos: desembocam sempre na inevitável repartição dos materiais entre os gestos próprios do escrito e os gestos indecidíveis de uma existência. O biógrafo tem, então, duas opções: ou oculta sistematicamente o problema que essa decisão de vida ou morte lhe coloca, a fim de poder construir uma tese sobre certa vida, ou decide expô-lo, indecidível como ele é, no seu próprio texto. Neste último caso – que é aquele de Agustina enquanto biógrafa – o problema do biógrafo acompanha, linha a linha, página a página, o problema do biografado. E já não pode haver aí biografia bem comportada, cronológica e apaziguadora. Há só epístolas que não se pôde enviar, mas que acabam por vir a uma luz que não procuraram, como sucede com esta Agustina Kafkiana. Dá-se então um jogo de aproximações e recuos, denso e doloroso, entre o dilema próprio do biógrafo, escritor que se exprime na resiliência da vida, e o dilema desse outro escritor que está já morto, decerto, mas morto na misteriosa imperfeição da morte que é a literatura. É pela literatura que este oculta a vida no texto que estende ao primeiro.
Agustina foi habituada pelo gesto narrativo a colocar-se diante de personagens que falham sistematicamente a tentativa de se ocultarem. No texto biográfico, essa ocultação recorre à morte como artimanha derradeira. O biografado veste-se aí de morte, da morte que inscrevera na literatura, e tudo o que consegue é revelar uma vida silente. Não é Agustina que retira as suas personagens à morte e lhes vem dar a vida póstuma: são elas que se enlaçam nessa narração perpassada por um cepticismo sobre a possibilidade biográfica, quer dizer, sobre a vida após a morte. Se verificarmos com atenção, veremos que esse cepticismo se refere sobretudo à construção de um texto que esclareça uma vida, nunca à continuidade entre vida escrita e vida sonhada, que constitui a única matéria propriamente viva da escrita de Agustina. Assim, a recusa da vida biografada em revelar-se ilumina a própria agitação do que se esforça por se ocultar e que não é mais do que a própria vida:
«Usando uma expressão do próprio Kafka, todos nós somos um ninho de ratos povoado de pensamentos reservados. E quando se trata de examinar e medir o Bem, ou quando se trata de examinar o mais ínfimo dos nossos actos, recuamos para aquém dos nossos pensamentos reservados. Porque a lama estende-se pelos terrenos mais profundos, e não a lava ou o húmus vivificador.[1]»
Diante de Kafka, a escrita viva de Agustina depara com as particularidades do exposto kafkiano. Se, neste, tudo parece constituir, paradoxalmente, um «caso subterrâneo», tal sucede porque, tal como acontece à toupeira, «a reflexão não o embeleza, mas permite-lhe esperar que a aparência se transformará em natureza e que o macio pêlo da toupeira será um dia a doce face da sua alma»[2]. Tudo em Kafka se expõe, mas aí onde a exposição não é esperada: na vida reservada, na espera e no risco. Essa exposição é perturbadora e releva da inteligência, ao contrário do tipo de exposição que vemos hoje nos media, fruto da cobardia inscrita na complacência. No texto «Um presépio aberto», Agustina fala-nos de um Kafka «educador». Essa é uma das passagens deste livro em que dois tipos de escritores inteligentes – Kafka e Agustina – se reconhecem mutuamente. Lemos aí a mais alta forma de biografia concentrada na seguinte frase: «A inteligência é, para Kafka, uma maneira de ser poupado por essa terrível força que sacode e destrói tudo quanto é vivo»[3]. Agustina, a escritora, que tantos enredos desdobrou a partir do domesticado e do indomesticável, depara-se, fascinada, com esta inteligência que não aparece como luz, mas antes «como um véu prodigioso»[4].
Os textos que Agustina Bessa-Luís dedica a Kafka pertencem a uma família singular, um tipo de ensaios só possível de gerar na amizade. A amizade literária, tão mais rara do que a inimizade, é aquela desprovida de toda a complacência. No que se refere a Kafka, essa é ainda a grande tradição quando queremos conhecer o que foi escrito sobre o autor de Metamorfose. É uma tradição inaugurada por Max Brod, o amigo tão elogiado enquanto socorrista dos manuscritos quanto criticado no seu papel de editor destes, e continuada por Gustav Janouch, a criança que encontra Kafka sem nunca vir a ser tomada, em toda a sua vida, pela impaciência da mendiga de Praga evocada por Agustina. Ser amigo de Kafka era, ao que parece, uma fonte de alegrias espirituais mas também daquelas banalmente quotidianas. Nestes textos, podemos verificar que Agustina conhece bem a alegria subtilmente dolorosa da amizade de Kafka, embora este tenha desaparecido pouco depois do seu nascimento. Os amigos em literatura foram aqueles que antecederam as classes profissionais que viriam a substituí-los progressivamente a partir do séc. XIX: os escritores profissionais (que nem Agustina nem Kafka são), os críticos, os professores de literatura, enfim, os diversos grupos de especialistas. Poucos destes são fiáveis na amizade. É por isso que a homenagem que Agustina faz a Kafka rejeita incisivamente toda a apropriação dessa amizade:
«Em geral, só os literatos se interessam por Kafka e o divulgam para honra das Letras. Mas um homem como Kafka corresponde à honra da humanidade no seu sentido de valor total, que protege e codifica as leis tanto da sobrevivência como da supervivência.»[5]
Só a amizade oferece a ocasião de escrever tão profundamente sobre o ofício literário que ambos partilham e sobre a sua estranheza. É certo, contudo, que os processos pelos quais Kafka e Agustina confrontaram essa estranheza são diametralmente opostos. Em Kafka, o resultado textual desse ofício aspira ao desaparecimento. Só uma conivência inconfessável preservará muitos dos textos dispersos. Em Agustina, toda a escrita parece já formada quando vem à luz do dia, destinada a ficar na luz solar, embora ocultando a sua longa raiz. Por isso mesmo, é Kafka tão importante para Agustina. Em tudo diferentes, mas irmanados numa característica comum: nunca a literatura tende neles para o trágico, já que a tragédia é um luxo que deixam aos povos dominantes e às castas que se afirmam na História.

2.
Há duas ou três formas inteligentes de escrever sobre Kafka. Mas a inteligência de Kafka não reside apenas na escrita, caso em que a inteligência biográfica seria apenas um encontro acidental. A grande recriação de Kafka como escritor «inteligente», ou seja, como hipertrofia do escritor, encontramo-la em Blanchot. Numa primeira abordagem, parece existir entre este e Agustina uma improvável comunidade kafkiana. Aliás, os anos dos textos que Blanchot dedicou a Kafka estendem-se por vinte e cinco, um número não distante dos vinte e dois anos de missivas que aqui lhe dirige Agustina[6]. Agustina, sabemo-lo, é uma escritora em quem a inteligência é o dom de uma natureza (mas não a «sua natureza») que vem pelo escrito, ou seja, uma natureza que só existe plenamente pela afirmação. Ao invés, Kafka combate os dons que a escrita lhe revela, coloca-os à prova, já que a literatura é para ele «um sucesso da solidão». Como escreve Blanchot, pensando em Kafka, «a literatura, ao fazer-se impotência em revelar, quereria tornar-se revelação daquilo que a revelação destrói»[7]. Mas Blanchot engana-se quando logo acrescenta que esse é «um esforço trágico». É antes um esforço cómico, o que não lhe retira a sua profunda verdade. Com efeito, os esforços de Kafka nunca incidem naquilo que esperaríamos e são sempre surpreendentes. São, aliás, uma das dimensões fundamentais do humor kafkiano, que Agustina tão bem capta numa passagem magistral:
«Não se trata de um escritor intimista; desagrada-lhe a ideia de ser tratado como tal. O seu sofrimento é feérico, irreal, explode no escuro como uma batalha de luzes, de clarões. Parece uma forma de rir. É uma forma de rir.»[8]
É impressionante, por isso mesmo, o conflito de sentimentos de Kafka perante a possibilidade de vir a ser um autor publicado: terror, desejo – «avidez», diz ele –, repugnância de si. Se nos pusermos a mesma questão relativamente a Agustina, apenas conseguiremos evocar a segurança, a ambição, a serenidade da escritora. Se Kafka foi, até ao fim, a impossibilidade de ser escritor, Agustina terá sido sempre a certeza de ser escritora. Pelo menos assim nos aparecem estas duas improváveis vidas paralelas.
Há, contudo, um segredo paralelo nestes dois nomes tão dissemelhantes no género, no carácter e na oficina. Coloquemo-nos a questão do autor que lê um outro escritor como se este fosse um seu modo secreto de ser: não apenas um par, mas a própria encarnação de uma persona literária que o autor-leitor reconhece na sua sombra interior. É certo que Agustina leu recorrentemente Kafka desde que o descobriu. Era aí movida pela curiosidade e não pela escola buissonnière que tantos autores lidos lhe terão dado. Nunca Kafka seria um mestre para ela. Ele é outra coisa. Maior ainda, mas por isso tanto mais inquietante, já que nele a consciência do escritor é uma sensibilidade incomportável perante a vida. Lendo-o, Agustina foi reconhecendo a vida habitada por um segredo indizível que tantas das suas personagens já manifestavam em comportamento e em carácter. Na leitura, ela, com a curiosidade daquele que tem a absoluta necessidade de um conhecimento ameaçador, foi espreitando uma habitação que nunca poderia vir a ocupar ou a sentir como sua; uma arquitectura fascinante e inquietante por cuja janela espreitou durante anos e anos, até sentir que lhe conhecia os quartos e as divisões nunca pisadas. Via aí Kafka, e imaginava que escritora seria ela própria no seu lugar. Todos os textos de kafkiana são essa tentação de menina que espreita à janela e adivinha as silhuetas de uma vida literária que não é a sua.
Também nós podemos perguntar: que escritora seria Agustina se a publicação fosse para ela essa repugnante tentação? Se a escrita fosse nela esse tecer obscuro do texto, sempre incapaz de ser resolvido, mas sempre já completado nalgum plano desconhecido? Na impossibilidade de afirmarmos que seria uma outra Agustina, a escritora, ela seria aquela que experimentaria certamente uma outra vida perante a escrita. Desde logo, Agustina capta em Kafka, sem pretender refazê-la, essa experiência radical da escrita como vida interior. Nada de esotérico há aí: apenas uma densidade gravitacional que quase impede o corpo de caminhar direito. O Kafka alto que parecia nunca estirar os seus longos membros é o espírito da aranha na literatura do século XX. Uma forma superior da paciência.

Jorge Leandro Rosa



[1] Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Lisboa, Guimarães, 2012, p. 46.
[2] Id., ibid., p. 21.
[3] Id., ibid., p. 50.
[4] Id., ibid., p. 50.
[5] Id., ibid., p. 44.
[6] Se os textos que constituem De Kafka à Kafka vão de 1943 a 1968, Agustina dedica textos a Kafka (pelo menos os incluídos nesta recolha) no período compreendido entre 1983 e 2005.
[7] Maurice Blanchot, De Kafka à Kafka, Paris, Gallimard, 1981, p. 43.
[8] Agustina, op. cit., p. 26.

segunda-feira, abril 20, 2015

A fotografia do filósofo



Tenho no meu escritório (ou nos escritórios que se vão sucedendo) uma fotografia de Jankélévitch. Isso não significa que se trate do «meu» filósofo, daquele que mais me alimentou, no que se refere aos trabalhos do pensamento. Mas é, pensando bem, o filósofo que anda comigo e que penduro sempre junto das estantes da biblioteca. Há uma analogia espacial que o explica: nessa fotografia, inserida num cartaz da Seuil, um dos seus editores, Jankélévitch está em casa, apoiado numa estante da biblioteca, e examina um volume. Não consigo nela perceber qual o livro que ele segura nas suas (grandes) mãos. Ao fundo da estante, no ponto de fuga da imagem, vemos o retrato de Liszt. Como não encontro uma versão digital dessa fotografia, publico uma outra, belíssima, que descobri há pouco tempo. Devo dizer que Jankélévitch terá sido, certamente, um pensador fotogénico: a sua longa franja de cabelo branco dava uma nota de irreverência e de imagem cultivada a esse rosto grave e talhado na reflexão. Esta fotografia de Vladimir Jankélévitch dá-o a ver, é a minha impressão, na velha Sorbonne, onde durante décadas foi professor de filosofia moral. Num texto evocativo, Clément Rosset escreve: «Aquilo que antes do mais recordo, quando evoco as minhas lembranças de Jankélévitch, é uma prodigiosa faculdade de inatenção». E logo acrescentava que a inatenção é «uma atenção sempre ocupada alhures».

Admirei a figura de Vladimir Jankélévitch ainda antes de começar a lê-lo. Levei tempo para começar a ler Jankélévitch: dele, eu já sabia algumas coisas e a sua obra era uma promessa de deleite guardada para mais tarde. Era eu ainda um adolescente quando ouvi, no acaso da conversação, Nataniel Costa evocar esse título mágico e evocador de um dos seus livros: «Le je-ne-sais-quoi et le presque rien» (Paris, Seuil, 3 volumes). Um título complexo e, contudo, imediatamente compreensível! Toda uma arte difícil, subtil e onde o pensamento emerge do labor musical da linguagem.

Jankélévitch é um filósofo moderno a quem nunca faltou a prática retórica e estilística herdada da grande tradição filosófica francesa, de um lado, e da literatura e sensibilidade russas, do outro. Sem nunca ter sido, contudo, um desses filósofos místicos, como o eram tantos autores russos, por vezes admiráveis, que chegavam à França do entre-guerras. Aliás, o seu pai, S. Jankélévitch, foi tradutor para o francês de Berdiaeff e (se não estou em erro) de Chestov.

Não sei se ainda há leitores para esta filosofia: faltam-nos muitas das coisas que habitavam então o ambiente cultural e que favoreciam a sua compreensão. Não falo de uma simples «cultura geral», mas antes de um sábio «à-vontade» cultural, de uma certa desfaçatez na mistura subtil da erudição extrema e da provocação aos hábitos de pensamento.

A obra de Jankélévitch tem dois grandes esteios, que nele estão ligados como o estão os dois hemisférios do cérebro: a obra propriamente filosófica, se assim quisermos, e a obra sobre a música, quase tão extensa quanto a primeira e seu alimento íntimo e fundo. Nesta contam-se livros preciosos como «La Musique et l'ineffable», «La Musique et les heures», «La Présence lointaine», assim como monografias dedicadas a Liszt, Fauré, Ravel, Debussy, Albéniz, Mompou, etc. Estaremos diante de todo um programa musical? Foi muitas vezes sublinhado que Jankélévitch quase nunca escreveu sobre os grandes compositores da tradição romântica alemã, tal como se recusou, a partir de certo momento, a escrever sobre os filósofos de língua alemã. Uma dupla desfaçatez, evidentemente, estranha a qualquer nacionalismo, neste autor francês descendente de judeus russos e que passou à clandestinidade durante a ocupação. Mas trata-se de um certo programa musical para a Filosofia que nunca deixa de ser uma filosofia provinda da música e só na música formulável.

quinta-feira, abril 16, 2015

A arte com carnes e o cozinhado do humano

Em Malmö, no Malmö Konsthall, dois mendigos romenos foram exibidos numa galeria de arte. Suponho que sejam dois seres humanos; suponho também que sejam um homem e uma mulher (Livro do Genesis «oblige») cujas biografias inscrevem, efectivamente, a mendicidade e a condição étnica «rom» ou cigana; suponho ainda que para esta mulher e este homem a exposição a que são submetidos na galeria de arte não seja substancialmente diferente daquela que viveram nas ruas das cidades da Europa. Para serem exibidos (aqui sem «»s) são necessárias as seguintes condições: estarem vivos (mas se algum viesse a morrer subitamente, pôr-se-ia a questão do interesse artístico da morte súbita); subsistirem, antes e depois da exposição, através da actividade que replicam na galeria (há sempre uma mimese nesta «verdade», aqui com contornos paródicos involuntários); não serem demasiado inconvenientes para o público nem para os espaços higiénicos dedicados à arte (aquele branco e aquela zona de circulação devem permanecer virginais).

O subtítulo do artigo do «Babelia», um suplemento cultural e literário que ainda sobrevive com dignidade na imprensa europeia, é interessante: «Tudo, do mais sagrado ao mais profano, se converteu em carne de museu». É interessante mas, provavelmente, equívoco e falho. Porque, na minha perpectiva, a condição da arte contemporânea é um assunto essencialmente arrumado. À arte falta a sensibilidade para o processo da sua própria morte. Ou seja, para a sua corrupção. Embora a morte da arte ande por aqui há dois séculos, e muitos artistas o tenham compreendido, há uma obstinação de cadáver que parece percorrer muitas das instituições artísticas e dos seus agentes.
Já escrevi, noutro lugar, sobre esse artista sueco, simultaneamente exemplar e menoríssimo, que dá pelo nome de Carl Hausswolff. Um oportunista, evidentemente, que teve a brilhante ideia de incorporar cinzas humanas provenientes dos fornos crematórios do campo de Majdanek nas suas pinturas. Mas o oportunismo de Hausswolff é o oportunismo do sistema artístico, incluindo os chamados «especialistas», sejam críticos ou artistas. A propósito da proibição da exibição de alguns quadros seus, estes tiveram a oportunidade de repetir as suas considerações sobre a posição exemplar (de quê e o que é o exemplar em arte?) de Duchamp e a admissão de «objectos» heteróclitos na galeria.

Na verdade, a «denúncia» política e ética efectuada pela arte confunde-se cada vez mais com a leviandade semiológica das populações do mundo globalizado. É cada vez mais um ritual de morte em nome da vida (daí o que há de questionável nesta noção da «carne de museu», corrupção expedita do conceito de carne em Michel Henry). Confunde-se com o fabrico de significação e com a práxis publicitários que tomaram conta das artes, em particular das artes plásticas.
Se a condição da arte contemporânea me parece um assunto arrumado, entregue ao «business as usual», a condição humana não anda longe de vir a estar também arrumada. Talvez no mesmo espaço de armazenamento e reciclagem: uma qualquer galeria de arte próxima de si. Será esse o verdadeiro sentido da «morte da arte» tematizada por Hegel?

terça-feira, março 03, 2015

Bachelard e a poética da vida material




É uma entrevista realizada dez meses antes da morte de Bachelard. Entrevista televisiva conduzida sem inteligência mas com o fascínio inevitável perante a figura de Bachelard, o sábio que soube habitar essas duas margens hoje tão distanciadas: a da cultura científica e a da vida poética e filosófica. Já deviam parecer intransponíveis para os espectadores que observavam esta figura em 1961: tudo em Bachelard reconduz aos arcanos da imaginação. Mas viver pela imaginação é, precisamente, viver na escala da vida de todos os dias. «Nem sempre é muito cómodo ser-se igual a si mesmo» diz Bachelard quando lhe perguntam o que faz um filósofo. Mas à questão sobre a sua vida quotidiana de filósofo, esse «sonhador», ele responde: «Nunca me vi atrapalhado pela vida material. Sei fazer tudo, não preciso de ninguém. Sei cozinhar. Sou auto-suficiente. E retorque subitamente, perguntando ao entrevistador: «E você ocupa-se da sua vida material?» Talvez, mas certamente muito menos do que o filósofo.

Bachelard vive, quando está em Paris, num minúsculo apartamento pejado de livros e manuscritos. Ora o problema da casa reparte-se por vários dos seus livros, principalmente La Terre et les rêveries du repos e, sobretudo, La Poétique de l'espace. Será esse apartamento infiel ao que ele pensou sobre a verdadeira casa? Sim, certamente que o é. Não, contudo, por causa da sua dimensão ou daquilo que hoje se diz ser a qualidade necessária da «construção civil», os materiais nobres ou os acabamentos. Não. Aquilo que lhe falta neste apartamento é a verticalidade. «É necessário que hajam uma cave e um sótão. Uma cave verdadeira, não uma cave civilizada». Vejamos a passagem em causa da Poétique: «A verticalidade é assegurada pela polaridade da cave e do sótão. As marcas desta polaridade são tão profundas que elas abrem, de algum modo, dois eixos muito diferentes para uma fenomenologia da imaginação. Com efeito, quase sem comentário, pode-se opor a racionalidade do telhado à irracionalidade da cave». Mas é no livro sobre os «devaneios do repouso» que a formulação é a mais feliz e bela: «De resto, colocando-nos dentro do mero ponto de vista da vida que sobe e desce em nós, percebemos bem que 'viver num andar' é viver bloqueado. Uma casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem cave é uma morada sem arquétipos».