sábado, dezembro 27, 2008

De Istambul a Lisboa a Istambul




Estive em Istambul no ano passado. Em Istambul, está-se sempre num tempo anterior. O tempo desdobra-se para trás, não às arrecuas, mas com a estranha temporalidade que alguns lugares instalam na nossa memória.
Retornei, mas tenho vindo a verificar que algo de mim vai lá regressando. E fica. Escolhe morada em alguma daquelas quase arruinadas casas, tão perto do Bósforo, mas sem vista para ele. Como, aliás, é tão comum em Lisboa. Não se deve viver vendo o Tejo (ou o Bósforo) como se este fosse uma parte do nosso mobiliário, sempre serviçal e disponível. O Bósforo e o Tejo assemelham-se, sobretudo, no facto da sua presença ser a própria presença da cidade invisível.

Sei que partes de mim regressam a Istambul porque o amigo que me acompanhou nessa viagem permanece lá. Não que ele viva em Istambul. Simplesmente, o lugar onde vive não é aquele em que permanece hoje, que - suspeito - seja a cidade do Bósforo. Essa perfeita dissociação entre o lugar onde se vive e aquele onde se permanece fascina-me e assusta-me.
O meu amigo ficou em Istambul porque não pode regressar a Lisboa. Eu, pela minha parte, regressaria a Istambul porque não posso permanecer em Lisboa.

Orhan Pamuk, no seu livro sobre Istambul, fala de hüzün, esse sentimento que atravessa o verdadeiro habitante de Istambul, «a pobreza, a confusão mental e a preponderância do negro e do branco, que se inscrevem na vida de Istambul como uma doença vergonhosa, que não se podem debelar e são vistas como um destino» (PAMUK, Istambul, Memórias de uma Cidade, Presença, p. 111).
Seria preciso acrescentar, a fim de contrariar os lugares-comuns, que esse «negro e branco» em tudo são compatíveis com o azul de Lisboa, tão próximo do de Istambul. Será, talvez, desnecessário acrescentar que «saudade» e hüzün cumprem funções semelhantes no equilíbrio instável desse urbanismo debruçado sobre a água.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Anacoretas no fim da modernidade


Max Weber definiu a estrutura constritiva da modernidade burocrática como stahlhartes Gehäuse, «Uma concha de aço», uma «concha dura como o aço». O aço, ao contrário da célebre tradução de Talcott Parsons, «the iron cage», é emblemático da modernidade e o ser humano é parte da sua matéria. A concha weberiana evoca, precisamente, essa ambígua situação do sujeito moderno na sua relação com o mundo: encapsulado na sua própria produção material, ele é também objecto de uma metamorfose, como a crisálida no casulo. Olhando mais de perto, o mundo deste sujeito é segregado pela sua própria actividade e encerra uma produtividade mais profunda e mais oculta, que parece ser de ordem ontológica. Esta produtividade, que não se traduz em índices económicos, não é uma produção verificável, mas ocorre fora do domínio visível deste mundo. E ocorre tanto mais quanto a actividade de transformação do mundo que produziu o aço do casulo se autonomiza, através de processos informacionais (que Weber chamaria burocráticos), e pode continuar sem ter necessidade do nosso entusiasmo. O «estranhamento do mundo», como diria Sloterdijk, pelo menos o actual, assenta num trabalho dedicado a esse mundo, o estranhamento vem do próprio trabalho, habita-o já, mas só será percebido quando o desinvestimento no sentido do mundo for percebido como possível a partir do casulo.

É a partir desse «trabalho do casulo» que entendemos a fenomenologia do «conforto» e da sua relação com o espaço exterior, que Peter Sloterdijk desenvolve em vários dos seus livros. Esta insere-se na teoria das esferas que Sloterdijk desenvolve na trilogia de Sphären, assim como em alguns outros livros que gravitam em torno desses. Trata-se de uma analítica alargada da instalação de mecanismos imunitários que substituem a metafísica na sociedade moderna. Todo o processo moderno parece ter sido dirigido pela vontade de fazer do mundo um lugar ao abrigo do desgosto gnóstico, como se a crise do fim do mundo romano estivesse ainda, de alguma forma, na memória cultural do mundo moderno.

Sabemos o que se passou quando a condição helénica passou a designar, no tempo de Alexandre, não o nascituro mas todo aquele que, pela educação, podia passar do mundo bárbaro à esfera helénica. A paideia, que aqui se transformava também, passa a aplicar-se à racionalidade comum aos humanos, o que significa que o problema central já não é, como em Platão ou Aristóteles, a polis, mas antes o kosmos, que nessa época passa a ser designado como «a verdadeira e grande polis para todos»[1]. Como escreve Hans Jonas, o grande estudioso do mundo gnóstico, referindo-se ao mundo helénico prestes a desaparecer, «ser um bom cidadão do kosmos, um kosmopolités, tal será o objecto moral do homem. O título que confere esse direito será, tão somente, a posse do logos, ou da razão. Este princípio distintivo faz dele um homem e coloca-o em relação directa com o princípio que governa o universo»[2]. O que os cosmopolitas não previram foi a subsistência das pulsões de abrigo nesse novo contexto.

Houve, em manifesto paralelo antigo com a concha de aço weberiana, uma mobilização anacorética que se difundiu entre os próprios cristãos nos século IV e V e que pertence ao mesmo turbilhão religioso do fim do Império: Simeão, o estilita praticou-a do alto da sua coluna durante 37 anos. Ao colocar-se sobre uma coluna, mas não querendo ser glória deste mundo, Simeão torna-se um ser prototípico da reunificação ontológica. Ainda não estamos aí na sociedade dos «perfeitos» cátaros, pelo que a única coisa perfeita é a demonstração levada a cabo pelo santo do que seja um corpo místico: é um corpo impossível já que, não pertencendo a este mundo e nele sendo inútil, não deixa de pertencer inteiramente à metáfora do abandono da carne que ele próprio produz. No alto da sua coluna, Simeão está plenamente na sua bolha, como diria Sloterdijk: está num processo de intersecção protegida. Intersecção dentro de si mesmo entre o ser pneumático, o que lhe resta do sopro original, e o seu Deus, que é esperado na solidão exposta e contudo secreta da pequena plataforma. No fundo, a bolha manifesta, claramente, a inutilidade de tentar deixar este mundo. Ou é, simplesmente, a suspensão desse esforço inútil. Paradoxo já plenamente gnóstico: o ser isola-se no mundo a fim de encontrar esse Outro que aí é absolutamente clandestino. Todos deverão ver a ânsia do encontro, mas ninguém neste mundo pode testemunhar o próprio encontro. Mesmo o encontro interior, se ocorre, está mais próximo da morte do que de qualquer outro evento do mundo: em ambos, o movimento essencial torna-se opaco para os olhos mundanos. A gnose será extremamente produtiva deste ponto de vista: ela produzirá aqueles que terão sido, provavelmente, os primeiros individualistas da História: indivíduos plenamente convencidos da inutilidade de qualquer transmissão da experiência. Para estes, místicos que foram exilados num mundo privado da fonte divina, toda e qualquer situação exime-os da solidariedade com vista a fins mundanos, já que nada aí pode frutificar que não se converta em fruto ilegítimo do demiurgo. Ela desembocará, logicamente, na rejeição da teologia trinitária que mediatiza a díade Deus-alma.

A pergunta que devemos colocar-nos, a única pergunta com relevância, é a que visa saber qual a natureza da inutilidade que alimenta os novos anacoretas: suspeitamos que ela seja, pura e simplesmente, a inutilidade de se tentar pertencer a este mundo: todos os esforços patéticos que vemos à nossa volta são a imagem suspensa dessa inútil pertença. Onde está o Simeão novíssimo capaz de no-lo demonstrar?


[1] JONAS, Hans (1970), La Religion Gnostique, p. 23.

[2] JONAS (1970), p. 23.

sexta-feira, outubro 03, 2008


Esta é uma das mais antigas fotografias conhecidas. Mas é, verdadeiramente, um exemplo daquilo que conhecemos como «fotografia»?
Durante muito tempo atribuída a William Henry Fox Talbot, pensava-se que dataria de 1839 ou um pouco mais tarde. Na verdade, investigações recentes fazem-na remontar à última década do século XVIII. Produzida no círculo de Henry Bright, através do contacto de papel revestido com nitrato de prata, estamos aqui perante uma imagem entre épocas, uma imagem cuja dimensão poética é tão perfeita e fresca como as nervuras que vemos na folha.
O tempo faz-se sentir na presença daquilo que não era esperado. E quando, sobretudo, o seu processo de gravação não está ainda absorvido pela história particular das técnicas, mas pertence a uma história que cruza matérias, olhares e tempos que estávamos habituados a separar.

sexta-feira, agosto 01, 2008

Mutação dos dispositivos


«Existem duas categorias [no ser]: os seres vivos (ou substâncias) e os dispositivos. Entre estas, e como terceiro elemento, os sujeitos. Chamo sujeito àquilo que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo-a-corpo entre os vivos e os dispositivos. Naturalmente, como na antiga metafísica, as substâncias e os sujeitos parecem confundir-se, mas não completamente. Por exemplo, um único indivíduo, uma única substância, podem ser a sede de vários processos de subjectivação: o utilizador de telemóveis, o internauta, o autor de narrativas, o apaixonado pelo tango, o militante antiglobalização, etc. Ao desenvolvimento infinito dos dispositivos do nosso tempo corresponde um desenvolvimento igualmente infinito de processos de subjectivação».
Giorgio AGAMBEN, Che cos'è un dispositivo?, pp. 32-33
(obra traduzida pelo autor deste blogue)

Parece claro que, a par da linguagem, a casa será talvez o mais antigo dispositivo. Tal como nos deixámos prender quase inadvertidamente naquela, também a casa (simultaneamente enquanto função arquitectónica e enquanto metáfora) se foi impondo como dispositivo omnipresente. A sua capacidade para manipular e distribuir relações de força encontra-se aparentemente diluída na cidade pós-moderna, no seu aparente ecletismo, na sua festividade. Mas é precisamente aí que a casa se revela um dispositivo cada vez mais vorazmente apetecido pelas dinâmicas de subjectivação evocadas por Agamben.

O aparelhamento que uma casa hoje fornece - dispositivo ele próprio ramificado em inúmeros outros dispositivos - não parece reflectir algumas das significações sólidas que lhe estavam historicamente associadas, quer sejam jurídicas, militares ou simbólico-genealógicas. A casa reflecte a docilidade política dos sujeitos, a sua amnésia cultural e a sua dispersão psíquica. A casa actual é uma casa económica (coisa que sempre foi) num sentido hipertrofiado. Serve uma economia polimorfa que atravessa o corpo, os objectos, o tempo vivido e as escalas imaginárias dos seres vivos.

A casa é, cada vez mais, o lugar do trabalho na medida em que, precisamente, deixou de ser um dispositivo de negociações entre economia doméstica (da «casa») e economia urbana. Ao deixar de sê-lo, a casa torna-se (à semelhança da linguagem) dispositivo de dispositivos, aparelhamento multiforme que tanto se orienta para o interior orgânico dos habitantes como o exterior inorgânico. Em consequência, a casa torna-se (mais) um dispositivo mutante, em si mesmo ilegível para as lógicas urbanísticas que não sejam apenas as que servem as redes de fluidez dos transportes físicos e das trocas imateriais.

Relembrando o tema que abriu este blogue: toda a casa comemorativa é hoje entendida como uma máquina demasiado sólida, sobretudo se pensarmos que ela evoca constantemente, a categoria do histórico. Contudo, esta é amplamente recuperável para a economia contemporânea se nela fizermos irromper o princípio que rege um outro dispositivo como o telemóvel: o tempo passa aqui a ser um processo de espacialização incessante. Tópica voraz, impossibilidade de profanar a fundação no tempo porque o tempo histórico já não é aquilo que se manipula aí.

sábado, julho 12, 2008

Bachelard lê Baudelaire que lê De Quincey que lê Kant


«Bien qu'il soit, dans le fond de son être, un citadin, Baudelaire sent l'accroissement de valeur d'intimité quand une maison est attaquée par l'hiver. Dans Les Paradis Artificiels, il dit le bonheur de Thomas de Quincey, enfermé dans l'hiver, tandis qu'il lit Kant, aidé par l'idéalisme de l'opium».
Bachelard, La Poétique de l'Espace, p. 51.

A leitura contém, em alvéolo, outra leitura. E outra ainda. O tema é bem conhecido. Se ler é comprimir o tempo para, depois, poder distendê-lo, uma tal sucessão de operações exige toda a maquinaria de leitura que só a casa oferece.
A casa é um mecanismo de leitura, mas é discutível que ela se possa transformar num dispositivo de leitura. Aliás, um dispositivo será, talvez, aquilo que se subtrai à leitura (e que nos subtrai a ela).

Existe, certamente, uma história, ainda por escrever, das casas como mecanismos de leitura. Não falo, obviamente, da história das bibliotecas ou dos arquivos. A experiência recente das casas associadas a vidas das letras em Portugal demonstra bem que uma cultura dessa mecânica particular parece ser hoje ignorada. Disso, aliás, não são apenas exemplo as casas da história cultural: todas as nossas casas mostram os sinais desta passagem de uma era da mecânica da leitura para um tempo de dispositivos videntes.

O problema da leitura e da suas casas é, afinal, um problema económico: a Oikonomia é um logos que constitui a sua gramática a partir da meditação sobre a administração da vida da casa. Da vida doméstica. Na Oikonomia, os bens materiais e os bens simbólicos entrelaçam-se.

Será por essa razão que a escola deixou de ser, na sociedade contemporânea, um lugar de aprendizagem do económico. Tornou-se numa instituição pós-económica, quer dizer, num lugar de esquecimento da casa e da leitura. Transformou-se numa videoconferência incessante.

quinta-feira, julho 10, 2008

"O que é uma casa?"


fotografia: http://espacollansol.blogspot.com


É um erro pensar que as casas são o signo de uma apropriação do espaço. A casa não estabelece uma fixação espacial do sujeito, do mesmo modo que o nome de um autor não determina um senhorio sobre uma certa parcela textual. Ao invés, habitar uma casa é estabelecer a estranha residência de uma heterogeneidade radical relativamente ao edificado. A casa é o lugar de uma inquietação outra, diferente das incertezas da rua. Mais desabrigada ainda porque é nela que o sujeito se pensa a partir de linhas de luz e sombra que vai vendo fugirem-lhe. Linhas que se movem de quarto para quarto, entre janelas, frinchas e fendas e lhe desarrumam o ser.

Se a casa de Garrett foi negada à nossa aprendizagem do heterogéneo, uma outra aparece ainda legível: a última casa que Maria Gabriela Llansol habitou. Esta aparece no movimento íntimo da amizade. Nenhuma instituição se apossou dela. Ao contrário, uma associação (a Associação de Estudos Llansolianos) passou aí a residir, tomando para si os riscos dessa habitação. Quer isto dizer que não lhe foi imposta uma patrimonialidade vazia. O que não significa que o essencial seja o suspender do tempo. O essencial é a aprendizagem do efeito sobre os corpos das experiências singulares do mundo.

O que é uma casa?
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é um entardecer singular quando Myriam e Ana têm a luz, que as ilumina, apagada; porque, ao crepúsculo, elas estão sempre num contexto de claridade, lendo; a sua mesa foi atravessada pelo eixo dos três quartos que se dispõem à volta da segunda entrada da casa que dá acesso a uma relação interior.
LLANSOL, Um beijo dado mais tarde, Rolim, p. 82.



O Testemunho do Estético regressa


Não é frequente um blogue ficar imóvel durante mais de três anos. Este ficou. Em parte porque a casa que o motivou desapareceu. Reaparece agora sem casa. Quer dizer: sem lugar fixo do estético. Essa ausência de um lugar para as estéticas será, a partir daqui, o "tema" desta página, a sua obsessão.


Depois da destruição da casa de Garrett, sem maior indignação da República, o que seria de esperar, e das inteligências penadas do burgo, tudo no país confirma a sua normalidade: naquele espaço nasce uma coisa simultaneamente grotesca e vulgar. Esta conjugação é, talvez, a mais significativa do nosso tempo e vai progredindo a olhos vistos nesta Lisboa.
É o incêndio das sensibilidades, do olhar amoroso, do olhar lido, erótico e curioso. Tudo em Lisboa se vai transformando em superfície cega. A sua cegueira é provocada pela ausência de uma certa luz a que chamámos testemunho do estético. Este é diferente das múltiplas estéticas publicitárias que vão ocupando o espaço urbano: esta cidade é já outra coisa, uma coisa tardo-moderna a que só por hábito damos o nome de urbe. Aliás como quase todos os espaços urbanos neste mundo abandonado pelas arquitecturas da modernidade. O pensamento estético abandonou-nos. Nesse abandono, contudo, estamos mais atentos aos testemunhos que saturam o nosso espaço. O estético é a saturação do espaço.

"A antiga tradição que afirma dever o mundo ser consumido pelo fogo ao fim de seis mil anos é verdadeira. Isso me foi transmitido pelo Inferno". William Blake

O testemunho estético, segundo Blake, deve ser simultaneamente devorador e evidente.

"Se as portas da percepção fossem desobstruídas, cada coisa apareceria ao homem tal como é: infinita". W. Blake