segunda-feira, fevereiro 23, 2015

No aniversário do suicídio de Zweig, hoje visitado por Roth

Stefan Zweig é o último escritor do entre-guerras a acreditar numa Europa capaz de encontrar a salvação na cultura. Essa crença iluminava, enlevava e enganava os seus leitores. Não há recepção na literatura europeia do século XX mais complexa do que esta. O Mundo de ontem. Memórias de um europeu, terminado já em 1941, meses antes do suicídio no exílio, distingue-se das memórias de outros escritores de língua alemã pela capacidade de reunir a alegria e o entusiasmo ao exercício nostálgico. Mas no próprio objecto desse entusiasmo aparecem os sinais da noite que cai sobre a Europa. Se alguém escutar aí um som de queda ou de fechamento semelhante àquele que ouvimos hoje não o desmentirei.

O seu amigo Joseph Roth, também um judeu austríaco, é um caso ainda mais complexo, mas, se descontarmos o entusiasmo cosmopolita de Zweig, a sua escrita está embebida na mesma complexa reunião de sentimento desesperado e de lucidez. Roth mata-se mais depressa (Paris, 1939) e sem ter procurado ilusórias terras «do futuro» no Brasil. Ou, então, essa promessa era parte do contrato de Zweig com os seus leitores em todo o mundo ( e muito amplamente em Portugal), o seu entusiasmo profissional, sempre em combate com a lucidez, demónio secreto para um judeu que sabia ler o mundo nos anos 30, embora a sua fraqueza pelas civilidades do império bicéfalo o iludisse quase até ao fim. Precisamos hoje de um autor judeu como ele (não o digo por uma questão étnica, mas por razão de uma herança difícil de definir e que estaria tentado a definir como metafísica). Talvez um Imre Kertész seja esse autor, mas a sua voz está demasiado abafada pelo estrondo mediático do nosso tempo. Felizes Zweig e Roth, felizes apesar de tudo, que puderam escrever num tempo em que só ainda havia o fragor das bombas e a morte silenciada nos campos. Hoje, o terrível fragor da sociedade da comunicação impede-nos de ouvir as nossas bombas e os nossos próprios silêncios de morte.

«A juventude do nosso tempo tinha a convicção de que algo de novo na arte ia acontecer, e que esta se tornaria mais apaixonada, mais profunda e mais complexa do que fora no tempo dos nossos pais. Contudo, fascinados apenas pelo que se passava nesse domínio da actividade humana, não notávamos que essas alterações estéticas apenas significavam o prelúdio de mais profundas e extensas modificações, perturbando, de início, a ordem em que os nossos pais viviam e, logo depois, destruindo o mundo e a sua época de segurança.» in O Mundo de Ontem, Porto: Civilização, p. 93.