sexta-feira, julho 03, 2015

A inteligência biográfica





(Recensão de Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Guimarães, Lisboa, 2012. Publicada em As Artes entre as Letras, números 148 e 149, Junho de 2015)



1.
Os textos biográficos – particularmente aqueles dedicados a homens e mulheres que escreveram – são salomónicos: desembocam sempre na inevitável repartição dos materiais entre os gestos próprios do escrito e os gestos indecidíveis de uma existência. O biógrafo tem, então, duas opções: ou oculta sistematicamente o problema que essa decisão de vida ou morte lhe coloca, a fim de poder construir uma tese sobre certa vida, ou decide expô-lo, indecidível como ele é, no seu próprio texto. Neste último caso – que é aquele de Agustina enquanto biógrafa – o problema do biógrafo acompanha, linha a linha, página a página, o problema do biografado. E já não pode haver aí biografia bem comportada, cronológica e apaziguadora. Há só epístolas que não se pôde enviar, mas que acabam por vir a uma luz que não procuraram, como sucede com esta Agustina Kafkiana. Dá-se então um jogo de aproximações e recuos, denso e doloroso, entre o dilema próprio do biógrafo, escritor que se exprime na resiliência da vida, e o dilema desse outro escritor que está já morto, decerto, mas morto na misteriosa imperfeição da morte que é a literatura. É pela literatura que este oculta a vida no texto que estende ao primeiro.
Agustina foi habituada pelo gesto narrativo a colocar-se diante de personagens que falham sistematicamente a tentativa de se ocultarem. No texto biográfico, essa ocultação recorre à morte como artimanha derradeira. O biografado veste-se aí de morte, da morte que inscrevera na literatura, e tudo o que consegue é revelar uma vida silente. Não é Agustina que retira as suas personagens à morte e lhes vem dar a vida póstuma: são elas que se enlaçam nessa narração perpassada por um cepticismo sobre a possibilidade biográfica, quer dizer, sobre a vida após a morte. Se verificarmos com atenção, veremos que esse cepticismo se refere sobretudo à construção de um texto que esclareça uma vida, nunca à continuidade entre vida escrita e vida sonhada, que constitui a única matéria propriamente viva da escrita de Agustina. Assim, a recusa da vida biografada em revelar-se ilumina a própria agitação do que se esforça por se ocultar e que não é mais do que a própria vida:
«Usando uma expressão do próprio Kafka, todos nós somos um ninho de ratos povoado de pensamentos reservados. E quando se trata de examinar e medir o Bem, ou quando se trata de examinar o mais ínfimo dos nossos actos, recuamos para aquém dos nossos pensamentos reservados. Porque a lama estende-se pelos terrenos mais profundos, e não a lava ou o húmus vivificador.[1]»
Diante de Kafka, a escrita viva de Agustina depara com as particularidades do exposto kafkiano. Se, neste, tudo parece constituir, paradoxalmente, um «caso subterrâneo», tal sucede porque, tal como acontece à toupeira, «a reflexão não o embeleza, mas permite-lhe esperar que a aparência se transformará em natureza e que o macio pêlo da toupeira será um dia a doce face da sua alma»[2]. Tudo em Kafka se expõe, mas aí onde a exposição não é esperada: na vida reservada, na espera e no risco. Essa exposição é perturbadora e releva da inteligência, ao contrário do tipo de exposição que vemos hoje nos media, fruto da cobardia inscrita na complacência. No texto «Um presépio aberto», Agustina fala-nos de um Kafka «educador». Essa é uma das passagens deste livro em que dois tipos de escritores inteligentes – Kafka e Agustina – se reconhecem mutuamente. Lemos aí a mais alta forma de biografia concentrada na seguinte frase: «A inteligência é, para Kafka, uma maneira de ser poupado por essa terrível força que sacode e destrói tudo quanto é vivo»[3]. Agustina, a escritora, que tantos enredos desdobrou a partir do domesticado e do indomesticável, depara-se, fascinada, com esta inteligência que não aparece como luz, mas antes «como um véu prodigioso»[4].
Os textos que Agustina Bessa-Luís dedica a Kafka pertencem a uma família singular, um tipo de ensaios só possível de gerar na amizade. A amizade literária, tão mais rara do que a inimizade, é aquela desprovida de toda a complacência. No que se refere a Kafka, essa é ainda a grande tradição quando queremos conhecer o que foi escrito sobre o autor de Metamorfose. É uma tradição inaugurada por Max Brod, o amigo tão elogiado enquanto socorrista dos manuscritos quanto criticado no seu papel de editor destes, e continuada por Gustav Janouch, a criança que encontra Kafka sem nunca vir a ser tomada, em toda a sua vida, pela impaciência da mendiga de Praga evocada por Agustina. Ser amigo de Kafka era, ao que parece, uma fonte de alegrias espirituais mas também daquelas banalmente quotidianas. Nestes textos, podemos verificar que Agustina conhece bem a alegria subtilmente dolorosa da amizade de Kafka, embora este tenha desaparecido pouco depois do seu nascimento. Os amigos em literatura foram aqueles que antecederam as classes profissionais que viriam a substituí-los progressivamente a partir do séc. XIX: os escritores profissionais (que nem Agustina nem Kafka são), os críticos, os professores de literatura, enfim, os diversos grupos de especialistas. Poucos destes são fiáveis na amizade. É por isso que a homenagem que Agustina faz a Kafka rejeita incisivamente toda a apropriação dessa amizade:
«Em geral, só os literatos se interessam por Kafka e o divulgam para honra das Letras. Mas um homem como Kafka corresponde à honra da humanidade no seu sentido de valor total, que protege e codifica as leis tanto da sobrevivência como da supervivência.»[5]
Só a amizade oferece a ocasião de escrever tão profundamente sobre o ofício literário que ambos partilham e sobre a sua estranheza. É certo, contudo, que os processos pelos quais Kafka e Agustina confrontaram essa estranheza são diametralmente opostos. Em Kafka, o resultado textual desse ofício aspira ao desaparecimento. Só uma conivência inconfessável preservará muitos dos textos dispersos. Em Agustina, toda a escrita parece já formada quando vem à luz do dia, destinada a ficar na luz solar, embora ocultando a sua longa raiz. Por isso mesmo, é Kafka tão importante para Agustina. Em tudo diferentes, mas irmanados numa característica comum: nunca a literatura tende neles para o trágico, já que a tragédia é um luxo que deixam aos povos dominantes e às castas que se afirmam na História.

2.
Há duas ou três formas inteligentes de escrever sobre Kafka. Mas a inteligência de Kafka não reside apenas na escrita, caso em que a inteligência biográfica seria apenas um encontro acidental. A grande recriação de Kafka como escritor «inteligente», ou seja, como hipertrofia do escritor, encontramo-la em Blanchot. Numa primeira abordagem, parece existir entre este e Agustina uma improvável comunidade kafkiana. Aliás, os anos dos textos que Blanchot dedicou a Kafka estendem-se por vinte e cinco, um número não distante dos vinte e dois anos de missivas que aqui lhe dirige Agustina[6]. Agustina, sabemo-lo, é uma escritora em quem a inteligência é o dom de uma natureza (mas não a «sua natureza») que vem pelo escrito, ou seja, uma natureza que só existe plenamente pela afirmação. Ao invés, Kafka combate os dons que a escrita lhe revela, coloca-os à prova, já que a literatura é para ele «um sucesso da solidão». Como escreve Blanchot, pensando em Kafka, «a literatura, ao fazer-se impotência em revelar, quereria tornar-se revelação daquilo que a revelação destrói»[7]. Mas Blanchot engana-se quando logo acrescenta que esse é «um esforço trágico». É antes um esforço cómico, o que não lhe retira a sua profunda verdade. Com efeito, os esforços de Kafka nunca incidem naquilo que esperaríamos e são sempre surpreendentes. São, aliás, uma das dimensões fundamentais do humor kafkiano, que Agustina tão bem capta numa passagem magistral:
«Não se trata de um escritor intimista; desagrada-lhe a ideia de ser tratado como tal. O seu sofrimento é feérico, irreal, explode no escuro como uma batalha de luzes, de clarões. Parece uma forma de rir. É uma forma de rir.»[8]
É impressionante, por isso mesmo, o conflito de sentimentos de Kafka perante a possibilidade de vir a ser um autor publicado: terror, desejo – «avidez», diz ele –, repugnância de si. Se nos pusermos a mesma questão relativamente a Agustina, apenas conseguiremos evocar a segurança, a ambição, a serenidade da escritora. Se Kafka foi, até ao fim, a impossibilidade de ser escritor, Agustina terá sido sempre a certeza de ser escritora. Pelo menos assim nos aparecem estas duas improváveis vidas paralelas.
Há, contudo, um segredo paralelo nestes dois nomes tão dissemelhantes no género, no carácter e na oficina. Coloquemo-nos a questão do autor que lê um outro escritor como se este fosse um seu modo secreto de ser: não apenas um par, mas a própria encarnação de uma persona literária que o autor-leitor reconhece na sua sombra interior. É certo que Agustina leu recorrentemente Kafka desde que o descobriu. Era aí movida pela curiosidade e não pela escola buissonnière que tantos autores lidos lhe terão dado. Nunca Kafka seria um mestre para ela. Ele é outra coisa. Maior ainda, mas por isso tanto mais inquietante, já que nele a consciência do escritor é uma sensibilidade incomportável perante a vida. Lendo-o, Agustina foi reconhecendo a vida habitada por um segredo indizível que tantas das suas personagens já manifestavam em comportamento e em carácter. Na leitura, ela, com a curiosidade daquele que tem a absoluta necessidade de um conhecimento ameaçador, foi espreitando uma habitação que nunca poderia vir a ocupar ou a sentir como sua; uma arquitectura fascinante e inquietante por cuja janela espreitou durante anos e anos, até sentir que lhe conhecia os quartos e as divisões nunca pisadas. Via aí Kafka, e imaginava que escritora seria ela própria no seu lugar. Todos os textos de kafkiana são essa tentação de menina que espreita à janela e adivinha as silhuetas de uma vida literária que não é a sua.
Também nós podemos perguntar: que escritora seria Agustina se a publicação fosse para ela essa repugnante tentação? Se a escrita fosse nela esse tecer obscuro do texto, sempre incapaz de ser resolvido, mas sempre já completado nalgum plano desconhecido? Na impossibilidade de afirmarmos que seria uma outra Agustina, a escritora, ela seria aquela que experimentaria certamente uma outra vida perante a escrita. Desde logo, Agustina capta em Kafka, sem pretender refazê-la, essa experiência radical da escrita como vida interior. Nada de esotérico há aí: apenas uma densidade gravitacional que quase impede o corpo de caminhar direito. O Kafka alto que parecia nunca estirar os seus longos membros é o espírito da aranha na literatura do século XX. Uma forma superior da paciência.

Jorge Leandro Rosa



[1] Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Lisboa, Guimarães, 2012, p. 46.
[2] Id., ibid., p. 21.
[3] Id., ibid., p. 50.
[4] Id., ibid., p. 50.
[5] Id., ibid., p. 44.
[6] Se os textos que constituem De Kafka à Kafka vão de 1943 a 1968, Agustina dedica textos a Kafka (pelo menos os incluídos nesta recolha) no período compreendido entre 1983 e 2005.
[7] Maurice Blanchot, De Kafka à Kafka, Paris, Gallimard, 1981, p. 43.
[8] Agustina, op. cit., p. 26.