sábado, julho 12, 2008

Bachelard lê Baudelaire que lê De Quincey que lê Kant


«Bien qu'il soit, dans le fond de son être, un citadin, Baudelaire sent l'accroissement de valeur d'intimité quand une maison est attaquée par l'hiver. Dans Les Paradis Artificiels, il dit le bonheur de Thomas de Quincey, enfermé dans l'hiver, tandis qu'il lit Kant, aidé par l'idéalisme de l'opium».
Bachelard, La Poétique de l'Espace, p. 51.

A leitura contém, em alvéolo, outra leitura. E outra ainda. O tema é bem conhecido. Se ler é comprimir o tempo para, depois, poder distendê-lo, uma tal sucessão de operações exige toda a maquinaria de leitura que só a casa oferece.
A casa é um mecanismo de leitura, mas é discutível que ela se possa transformar num dispositivo de leitura. Aliás, um dispositivo será, talvez, aquilo que se subtrai à leitura (e que nos subtrai a ela).

Existe, certamente, uma história, ainda por escrever, das casas como mecanismos de leitura. Não falo, obviamente, da história das bibliotecas ou dos arquivos. A experiência recente das casas associadas a vidas das letras em Portugal demonstra bem que uma cultura dessa mecânica particular parece ser hoje ignorada. Disso, aliás, não são apenas exemplo as casas da história cultural: todas as nossas casas mostram os sinais desta passagem de uma era da mecânica da leitura para um tempo de dispositivos videntes.

O problema da leitura e da suas casas é, afinal, um problema económico: a Oikonomia é um logos que constitui a sua gramática a partir da meditação sobre a administração da vida da casa. Da vida doméstica. Na Oikonomia, os bens materiais e os bens simbólicos entrelaçam-se.

Será por essa razão que a escola deixou de ser, na sociedade contemporânea, um lugar de aprendizagem do económico. Tornou-se numa instituição pós-económica, quer dizer, num lugar de esquecimento da casa e da leitura. Transformou-se numa videoconferência incessante.

quinta-feira, julho 10, 2008

"O que é uma casa?"


fotografia: http://espacollansol.blogspot.com


É um erro pensar que as casas são o signo de uma apropriação do espaço. A casa não estabelece uma fixação espacial do sujeito, do mesmo modo que o nome de um autor não determina um senhorio sobre uma certa parcela textual. Ao invés, habitar uma casa é estabelecer a estranha residência de uma heterogeneidade radical relativamente ao edificado. A casa é o lugar de uma inquietação outra, diferente das incertezas da rua. Mais desabrigada ainda porque é nela que o sujeito se pensa a partir de linhas de luz e sombra que vai vendo fugirem-lhe. Linhas que se movem de quarto para quarto, entre janelas, frinchas e fendas e lhe desarrumam o ser.

Se a casa de Garrett foi negada à nossa aprendizagem do heterogéneo, uma outra aparece ainda legível: a última casa que Maria Gabriela Llansol habitou. Esta aparece no movimento íntimo da amizade. Nenhuma instituição se apossou dela. Ao contrário, uma associação (a Associação de Estudos Llansolianos) passou aí a residir, tomando para si os riscos dessa habitação. Quer isto dizer que não lhe foi imposta uma patrimonialidade vazia. O que não significa que o essencial seja o suspender do tempo. O essencial é a aprendizagem do efeito sobre os corpos das experiências singulares do mundo.

O que é uma casa?
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é um entardecer singular quando Myriam e Ana têm a luz, que as ilumina, apagada; porque, ao crepúsculo, elas estão sempre num contexto de claridade, lendo; a sua mesa foi atravessada pelo eixo dos três quartos que se dispõem à volta da segunda entrada da casa que dá acesso a uma relação interior.
LLANSOL, Um beijo dado mais tarde, Rolim, p. 82.



O Testemunho do Estético regressa


Não é frequente um blogue ficar imóvel durante mais de três anos. Este ficou. Em parte porque a casa que o motivou desapareceu. Reaparece agora sem casa. Quer dizer: sem lugar fixo do estético. Essa ausência de um lugar para as estéticas será, a partir daqui, o "tema" desta página, a sua obsessão.


Depois da destruição da casa de Garrett, sem maior indignação da República, o que seria de esperar, e das inteligências penadas do burgo, tudo no país confirma a sua normalidade: naquele espaço nasce uma coisa simultaneamente grotesca e vulgar. Esta conjugação é, talvez, a mais significativa do nosso tempo e vai progredindo a olhos vistos nesta Lisboa.
É o incêndio das sensibilidades, do olhar amoroso, do olhar lido, erótico e curioso. Tudo em Lisboa se vai transformando em superfície cega. A sua cegueira é provocada pela ausência de uma certa luz a que chamámos testemunho do estético. Este é diferente das múltiplas estéticas publicitárias que vão ocupando o espaço urbano: esta cidade é já outra coisa, uma coisa tardo-moderna a que só por hábito damos o nome de urbe. Aliás como quase todos os espaços urbanos neste mundo abandonado pelas arquitecturas da modernidade. O pensamento estético abandonou-nos. Nesse abandono, contudo, estamos mais atentos aos testemunhos que saturam o nosso espaço. O estético é a saturação do espaço.

"A antiga tradição que afirma dever o mundo ser consumido pelo fogo ao fim de seis mil anos é verdadeira. Isso me foi transmitido pelo Inferno". William Blake

O testemunho estético, segundo Blake, deve ser simultaneamente devorador e evidente.

"Se as portas da percepção fossem desobstruídas, cada coisa apareceria ao homem tal como é: infinita". W. Blake