quinta-feira, janeiro 28, 2016

O seguinte texto foi publicado no número de Janeiro de 2016 da revista Contemporânea. Corresponde, com excepção de algumas modificações com vista à sua publicação, à apresentação que proferi nos «Maus Hábitos, no espaço da exposição «Uma janela para alguma outra coisa» de Hugo de Almeida Pinho.



 Conheci o Hugo recentemente, tendo, desse encontro, surgido um primeiro diálogo. Logo depois, colocado perante estes trabalhos, senti um vivo interesse pelo conjunto desta exposição. Quero colocar-me aqui, porque o trabalho que me impressionou particularmente foi este [levanta-se da cadeira, e aponta para a imagem com a tina de revelação a vermelho]. Curiosamente, sempre entendi as imagens como entidades que prometem a própria chegada. Daí que upcoming images constitua verdadeiramente um título pertinente: algo que anuncia a sua chegada, essa promessa que é o cerne de uma certa cultura da viagem no Ocidente. Essa cultura tem uma história que o Hugo pensou e pôs diante de nós. O turismo não era irrelevante quando queríamos atribuir sentido às nossas viagens. Tornou-se irrelevante. Não creio, contudo, que essa irrelevância seja o tema destes trabalhos. Vejo neles, pelo contrário, um plano da experiência que já passou pelo que é significativo na deslocação turística, que já acedeu à irrelevância, que já se decantou nela e já produziu, desse modo, um conjunto de imagens, ou seja, de chegadas incumpridas. A nossa cultura reuniu, de modo singular, a viagem e a imagem, formando assim uma espécie de impossibilidade compósita a que nos fomos habituando. O turismo é, talvez, a história da nossa viagem para a irrelevância civilizacional. E, quando falo de «imagem», faço-o no sentido de uma poética que se disseminou e que se tornou fixação dorida do sonho do viajante. Em última análise, o viajante que recusa a promessa vã da chegada imagética deve levar a frustração da viagem até ao fim. Deve, creio, viajar por dentro da própria imagem em que ele já se tornou. Eis a razão por que quero aqui ler-vos um excerto de uma carta que resume esse sentimento que tive quando encontrei este mupi do Hugo. Vou traduzir do francês ao mesmo tempo que leio, por isso peço desculpa pelas hesitações.
“Querida mamã. Recebi as duas meias e a vossa carta, recebi-as em circunstâncias muito tristes. Vejo aumentar a inflamação do meu joelho direito e a dor na articulação, sem encontrar nenhum remédio, nem nenhuma prescrição, no Harar estamos no meio dos negros e não há lá europeus, decidi portanto partir. Era preciso abandonar os negócios, o que não era fácil, pois eu tinha o meu dinheiro disperso por todo o lado, mas consegui, por fim, liquidar quase tudo e pude partir. Desde há uma vintena de dias que me permaneço deitado no Harar e na impossibilidade de fazer um único movimento, sofrendo dores atrozes, e não conseguindo dormir. Aluguei dezasseis negros, negros portadores, a cerca de quinze talares cada um do Harar a Zeïlah, fi-los fabricar uma padiola coberta de lona, e foi deitado nela que acabo de fazer, em doze dias, os trezentos quilómetros de deserto que separam os montes do Harar do porto de Zeïlah. Inútil dizer-vos os terríveis sofrimentos durante o caminho, não pude nunca fazer um único passo fora da liteira, o meu joelho inchava visivelmente e a dor aumentava continuamente.”[1]
Esta é uma carta de Arthur Rimbaud, escrita no dia 30 de Abril de 1891, em Áden, cidade portuária do Iémen, onde se encontra internado no Hospital europeu. Ela faz parte de um conjunto de mais de uma centena de cartas hoje conhecidas de Rimbaud. Lamentavelmente, não traduzidas, na sua maioria, em português, embora eu pense que elas fazem parte da obra rimbaudiana. É certo que nos dez anos que passará no norte de África, frequentemente entre Áden e Harar, na Abissínia, Rimbaud far-se-á comerciante e traficante. Em fundo, contudo, entendo-o como o Rimbaud que fecha a obra poética e parte numa viagem sem fim. Não se fecha uma obra poética impunemente: é uma perigosa afronta à morte, já que, habitualmente, é esta que a encerra. Toda a restante vida de Rimbaud será um confronto com a ruína, porque este é um homem que decidiu afastar-se radicalmente da primeira metade da sua vida. É neste sentido que Rimbaud reúne as duas vertentes do viajante ocidental: aquele que se insere na experiência colonial e aquele que se desloca no desgosto da experiência que viveu. Este desgosto – parece-me –, as imagens que o Hugo colocou no seu banho dão-no magnificamente. Essa promessa inatingível da chegada encontramo-la toda aqui. Todo o turismo é fruto do comércio deste desespero com as imagens interiores por ele fabricadas.
Foi assim que, ao fim de um dia de reflexão, pude perceber que o meu fascínio por esta tina cheia de postais remetia para uma experiência turística – vamos chamar-lhe turística – muito precisa daqueles ocidentais que viajam pelo mundo sem ser em razão de fins imediatamente comerciais. Lendo a distribuição geográfica dos postais aqui liquidamente visíveis, que vão desde o Magreb até ao Egipto e ao Iraque, toda essa linha do mundo islâmico ao fundo do Mediterrâneo e que se prolonga até às portas da Ásia, fui projectado para uma série de memórias literárias e culturais do que chamarei um turismo desesperado. Eu não confundo, recuso-me a confundir, aquilo a que hoje chamamos turismo, globalizado e produto de entretenimento, com o turismo que os ocidentais fizeram durante séculos. Essa história turística dos ocidentais, cujo arranque cultural vou situar na modernidade no século XVI, e que para mim começa literariamente com um magnífico poeta francês, Joachim Du Bellay, um dos primeiros turistas ocidentais que se dirige a Roma e escreve sobre essa experiência. Ora, Roma no século XVI é essencialmente um campo de ruinas, um local lamacento. Evidentemente a Igreja está presente, é o Estado papal, mas, para onde quer que o turista se volte, há um campo de ruínas visível e há um mistério na origem do próprio facto de se ser ocidental. E é isso que fascina Du Bellay, é essa ruina, in sito e in stato. Portanto, o turismo não é na cultura ocidental uma viagem de prazer: o turismo é uma viagem de dor, de regret, como diz Du Bellay, que os prazeres ocasionais da viagem vão suavizando. Com o Risorgimento, a Península transalpina deixará de ser um cenário adequado a estes exercícios. É, então, naturalmente que os olhares destes turistas se voltarão para o além mediterrâneo, territórios recentemente aniquilados pela decadência e pelo colonialismo.
Esta viagem de confronto do eu, do confronto com a própria cisão do eu, que já só se reconhece enraizado em ruínas prestigiosas, vai adaptar-se maravilhosamente a estes territórios pouco povoados e desérticos. O turista viaja com a própria insuficiência do ser ocidental, leva-a consigo e projecta-a em locais onde a desagregação histórica ou natural atingiu um grau tal que a insuficiência pode aí vicejar. O momento mais belo e terrível dessa história do turismo ocidental será, para mim, a transição do século XIX para o século XX. Rimbaud, evidentemente, persiste em dar-nos um sinal inaugural. Mas é também nesses territórios que podemos situar uma escritora suíça magnífica, que começou a ser traduzida em Portugal há poucos anos, Annemarie Schwarzenbach, que exprime perfeitamente em textos como Morte na Pérsia[2], este sentimento de ir ao encontro da morte, ir ao encontro de uma espécie de revelação da luta com o eu. Não é ir ao encontro do próprio eu, não é ir ao encontro da representação de si, é ir ao encontro precisamente da fragmentação e dessa insuficiência que é, de alguma forma, a auto-consciência do autor, logo do artista. Isso, que em Rimbaud é muito claro, torna-se em Schwarzenbach quase insuportável. Oiçamos uma passagem da sua voz:
«É ténue a fronteira que separa o desumano do sobre-humano, e a grandeza desesperada da Ásia é sobre-humana: nem sequer hostil, apenas demasiado grande. Na Ásia, que importância tem a morte de alguém? E, no entanto, não conhecemos grito mais desesperado do que este: “Uma pessoa morre!» Não, nenhum falseamento poderá libertar-me do meu fardo e aliviar o leitor»[3]
O quase meio século que separa um e outra não tem aqui relevância particular: a grande diferença reside antes no facto de Arthur já ter deixado para trás a aventura estética, enquanto Annemarie ainda a transporta para o deserto, onde será duplamente calcinada no corpo e no espírito. Já Rimbaud é todo carne no momento em que o encontramos esgotado pelo seu turismo. O espírito reentrara há muitos anos nesse corpo refractário e seco, próprio para as grandes travessias, mas sem recursos interiores, que deixara no papel anos antes. Recordo, contudo, que Rimbaud possui um genuíno olhar de turista, visível nas fotografias que foi tirando no seu périplo. Estas parecem-nos comoventes e belas, sabendo nós de quem são. Contudo, o seu olhar, a sua promessa incumprida de chegada, está muito próximo daquele que encontramos nestes postais que o Hugo colocou no seu banho de revelação.
Há uma segunda parte da obra de Rimbaud que, para mim, não está escrita a não ser em breves clarões nas cartas, mas que é essa vida «dromedária», enigma do viajante que abandona toda a idealização do que encontrará no caminho e que é, contudo, obra-vida – como toma por título esta edição da obra de Rimbaud, que, por ser capaz de assim dar conta da dupla viagem deste, me parece superior a todas as outras. Terá Rimbaud abandonado a escrita para poder viajar? É pouco provável, já que a sua poesia era já o anúncio dessa viagem e da sua necessidade de não-inscrição. Evidentemente, falta-nos sempre o acesso à vida de Rimbaud, mas essa vida está de alguma forma como indício do fracasso da condição humana. O ser humano é um animal falhado. Eu diria que o turismo é a forma mais explícita de como essa questão é hoje exponencialmente revelada na nossa condição. Porque há uma outra história do turismo, ou uma pós-história deste: aquela que nós vemos hoje aqui no Porto, o turismo que não é o turismo do confronto, mas que é uma espécie de ilusão duma totalização do mundo, de uma harmonia e previsibilidade do mundo da viagem. Nestas condições, a ilusão da viagem é um terrível logro: alimentada como é pela promessa das imagens, a viagem turística é hoje tudo menos o que é a viagem. É assim que essa dimensão do turismo hoje foi completamente ocultada, o que provoca uma grave ilusão sobre a natureza da viagem. Não é por acaso que os ocidentais, os europeus em particular – desprovidos de uma cultura da viagem, de que os últimos testemunhos são aqueles que aqui evoquei – estão em pânico com as migrações, reconhecendo nelas algo de hediondo, mas sem referências culturais que lhes permitam compreendê-las. Os movimentos de migração permaneciam ainda como memória profunda desses turistas desesperados. E o seu desespero decorre da própria impossibilidade de se transformarem em migrantes. O movimento de migração é um movimento de hominização desde o Paleolítico. Portanto, o pânico face à migração é, sobretudo, o pânico perante a possibilidade de termos imagens dessa hominização. Nós, pela primeira vez, temos imagens dos movimentos migratórios, imagens praticamente em tempo real. Isso produz um imenso pânico, porque a migração foi entendida por ocidentais como Du Bellay ou Rimbaud como algo inacessível, marca do falhanço cultural da sua condição, já que ela é o puro movimento do que faz o Homem. E, portanto, essa condição humana em movimento parece-nos agora insuportável. Homens e mulheres como Rimbaud, como Annemarie Schwarzenbach, vão à procura dessa dimensão essencial do movimento, e por isso são turistas. Turistas magníficos, mas de qualquer forma turistas.
Tentei explicar algo do meu fascínio perante este teu belíssimo trabalho. Na verdade, a imagem da viagem permanece imersa no seu banho de revelação. Ela é essa promessa por cumprir que a viagem não pode, por si só, concretizar. O turismo é este banho em que o visível continuará mergulhado.







[1] «Ma chère Maman, Jai bien reçu vos deux bas et votre lettre, et je les ai reçus dans de tristes circonstances. Voyant toujours augmenter lenflure de mon genou droit et la douleur dans larticulation, sans trouver aucun remède ni aucun avis, puisquau Harar nous sommes au milieu des nègres et quil ny a point là dEuropéens, je me décidai à descendre. Il fallait abandonner les affaires : ce qui n’était pas très facile, car javais de largent dispersé de tous les côtés ; mais enfin je réussis à liquider à peu près totalement. Depuis déjà une vingtaine de jours, j’étais couché au Harar et dans limpossibilité de faire un seul mouvement, souffrant des douleurs atroces et ne dormant jamais. Je louai seize nègres porteurs, à raison de 15 thalaris lun, du Harar à Zeilah ; je fis fabriquer une civière recouverte dune toile, et cest là-dessus que je viens de faire, en douze jours, les 300 kilomètres de désert qui séparent les monts du Harar du port de Zeilah. Inutile de vous dire quelles horribles souffrances jai subies en route. Je nai jamais pu faire un pas hors de ma civière ; mon genou gonflait à vue d’œil, et la douleur augmentait continuellement. []». Arthur Rimbaud, Œuvre Vie, Édition du centenaire. Paris : Éditions Arléa, 1991, p. 811.
[2] Tod in Persien. Tradução portuguesa: Morte na Pérsia. Lisboa: Tinta-da-China, 2008.
[3] Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia, p. 15.