segunda-feira, dezembro 23, 2013

Comemorar Kierkegaard



A contracção violenta da ordem da crença e daquela da filosofia, contracção absolutamente imprópria à fé confessional, trará a Kierkegaard um traço constante: o de ser autor justificando-se. Nunca o ser está justificado em Kierkegaard, mas, precisamente, não há Stimmung mais fundamental na sua obra que não seja a do «justificar-se». Justificar, aqui, não é nem uma asserção nem uma tensão retrospectiva. O que ela faz é prometer o texto a uma plena actualidade, ou seja, uma promessa de romper o ecrã semiótico em que este está suspenso. Juntamente com Rousseau, mas num outro contexto, Kierkegaard abre a época em que, já não se fazendo ouvir o lamento pela queda existencial por efeito da escrita (e que vinha de Platão), se aviva a consciência da escrita como não-presença. Para que tal situação seja ultrapassada, será necessário o regresso à lei natural, no caso do primeiro, e o regresso à fé, no segundo. Ambos supõem uma arqui-escrita e, consequentemente, ambos se transformam em singulares autores confessionais em plena modernidade.
É essa abissalidade interna que faz dele um autor que tende a ser um autor religioso. O esforço do escritor, esforço da representação e da estrutura metafísica associada a esta, nunca toca verdadeiramente o meio a partir do qual se lança esse esforço, e que não é verdadeiramente o medium semiológico, aquele que é partilhado pelo leitor. É notável a percepção que um pensador da primeira metade do século XIX tem já da problemática do signo filosófico, da sua afecção gramatológica e do esquecimento de si que não constitui apenas uma possibilidade aberta no logos, mas antes a própria regra do jogo filosófico. São inúmeras as passagens da obra de Kierkegaard onde perpassa a inquietação pelo recurso a uma tekhné da memória que potencia, ela mesma o esquecimento existencial. Veja-se, por exemplo, um texto como Johannes Climacus ou De Omnibus dubitandum est: aí, o triplo exame da origem da Filosofia, da origem do exercício filosófico e da origem da Filosofia moderna é, a nosso ver, e de um modo justificativo, a tripla verificação do esquecimento existencial que afecta a Filosofia, do esquecimento inscrito no exercício da filosofia e, por último, do esquecimento que é, no seu conjunto técnico, a Filosofia moderna. Climacus está sempre, no fim de contas, confrontado pela tríplice impossibilidade (irónica em si mesma) de aceder ao começo filosófico, já que este se apresenta constituído e impossibilitado de retomar a situação matutina da Filosofia na Grécia.
(excerto de conferência lida na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em  16 de Dezembro de 2013)

 

quinta-feira, março 21, 2013

Quem é Maxence Caron? (1)

Descobri Maxence Caron quando adquiri o caderno por ele organizado em torno de Heidegger (AA.VV., Heidegger, Les Cahiers de l'Histoire de la Philosophie. Paris: Le Cerf, 2006). Os Cahiers constituem hoje uma notável colecção no panorama editorial em língua francesa, contando já com treze volumes dedicados a figuras como Hegel, Kant, Husserl, Schelling, mas também Mestre Eckhart, S. Tomás de Aquino, Simone Weil, Agostinho, Philippe Muray (sabe o leitor português quem é Muray?) e, acabado de sair sob a direcção de Claude Romano, Wittgenstein. Uma rápida análise da selecção dos pensadores bastaria para nos alertar para a singularidade e a independência de perspectivas de quem está por detrás da colecção: o próprio Maxence Caron.

Quem é Caron? «Filósofo», pensava eu, certamente no sentido em que a palavra é hoje sinónimo daquela mistura quase obrigatória entre o professor de Filosofia e o historiador da Filosofia. Foi só ao deparar com um dos seus livros, La Verité Captive (Le Cerf, 2009), que pude compreender o quanto essa minha impressão inicial era injusta e insuficiente! Caron é antes um filósofo no sentido antigo: um amigo do pensamento. O título do primeiro capítulo é revelador: «Os demónios da misosofia». A misosofia é o ódio, a aversão ao conhecimento, ao pensamento. É um problema comum no nosso tempo. Talvez demasiado generalizado para poder ser discernível. Caron vê-o bem e coloca-o no centro de um livro de grande fôlego. Aliás, estou em crer que a única forma de continuarmos a ser amigos do pensamento reside na percepção activa da irradiação da misosofia. Em quase todos os lugares e instituições. E, sobretudo, no coração dos homens e mulheres.

Uma das instituições onde a misosofia tem mais progredido é, por surpreendente que tal possa parecer, a Universidade. Por esse motivo, julgo, Caron não é professor universitário. Nem investigador. Apesar de ter escrito uma das teses de doutoramento dedicadas a Heidegger mais originais que existem: Heidegger Pensée de l’être et origine de la subjectivité, préface de Jean-François Marquet, Paris: Editions du Cerf, 2005. Caron é um escritor, o que é amplamente suficiente e deveria ser recomendação suficiente para o seu leitor.

Deixo aqui o programa editorial dos Cahiers: Les « Cahiers d'Histoire de la Philosophie » ont pour but d'offrir au public lettré ou aux étudiants un état des lieux et des recherches concernant les grands auteurs de l'Histoire de la Philosophie. Le moins que l'on puisse souligner de l'étude philosophique contemporaine est l'éclatement et la dispersion à quoi donne lieu une spécialisation qui, bien que nécessaire, conduit souvent à lui faire manquer son objet ; nous avons voulu remonter ici une pente que de nombreux faits dégringolent — la pente dont le sommet est l'Essentiel. À l'encontre d'une très actuelle tendance à vouloir établir la vocation de l'exégèse en des quartiers où elle se réduit à lessiver des cendres jusqu'à épuisement afin d'en obtenir des matières solubles, nous avons souhaité de réunir les forces et les auteurs qui la font échapper à cette apparemment fatale lixiviation. Texte ancien ou inédit, chacune des contributions de nos collectifs veut éclairer avec pédagogie un point fondamental de l'histoire de la pensée afin de faire emprunter au lecteur les travées qui le conduiront dans le chœur de chaque cathédrale.

quarta-feira, março 06, 2013

Blandine Verlet, 40 anos depois

Encontrei há duas semanas, num simpático amador e mercador de vinilo, um LP com excertos do Primeiro Livro das Toccate di Cimbalo de Frescobaldi (Telefunken, Das Alte Werk, 1973). Seria, por si só, emoção suficiente, não fosse a intérprete ser a discreta Blandine Verlet. Quase tudo o que ouvi interpretado por esta cravista me tocou. Algo a distingue dos grandes cravistas modernos, incluindo Gustav Leonhardt. Não que a oficina seja melhor, porque não é. Mas Blandine toca dirigindo-se a nós, que estamos irremediavelmente separados destes mundos. Recordo, em particular, o seu Louis Couperin, gravado para a Astrée do malogrado Michel Bernstein.

Recentemente, é publicado, na Aparté, um duplo CD com diversos excertos da obra para cravo de François Couperin, regresso de Blandine ao disco. É miraculoso que ainda existam (pequenos) editores de música. E que vão procurar Blandine Verlet, mais singular é. Este amor pela edição discográfica partilha o artesanato essencial da edição do livro.