segunda-feira, abril 20, 2015

A fotografia do filósofo



Tenho no meu escritório (ou nos escritórios que se vão sucedendo) uma fotografia de Jankélévitch. Isso não significa que se trate do «meu» filósofo, daquele que mais me alimentou, no que se refere aos trabalhos do pensamento. Mas é, pensando bem, o filósofo que anda comigo e que penduro sempre junto das estantes da biblioteca. Há uma analogia espacial que o explica: nessa fotografia, inserida num cartaz da Seuil, um dos seus editores, Jankélévitch está em casa, apoiado numa estante da biblioteca, e examina um volume. Não consigo nela perceber qual o livro que ele segura nas suas (grandes) mãos. Ao fundo da estante, no ponto de fuga da imagem, vemos o retrato de Liszt. Como não encontro uma versão digital dessa fotografia, publico uma outra, belíssima, que descobri há pouco tempo. Devo dizer que Jankélévitch terá sido, certamente, um pensador fotogénico: a sua longa franja de cabelo branco dava uma nota de irreverência e de imagem cultivada a esse rosto grave e talhado na reflexão. Esta fotografia de Vladimir Jankélévitch dá-o a ver, é a minha impressão, na velha Sorbonne, onde durante décadas foi professor de filosofia moral. Num texto evocativo, Clément Rosset escreve: «Aquilo que antes do mais recordo, quando evoco as minhas lembranças de Jankélévitch, é uma prodigiosa faculdade de inatenção». E logo acrescentava que a inatenção é «uma atenção sempre ocupada alhures».

Admirei a figura de Vladimir Jankélévitch ainda antes de começar a lê-lo. Levei tempo para começar a ler Jankélévitch: dele, eu já sabia algumas coisas e a sua obra era uma promessa de deleite guardada para mais tarde. Era eu ainda um adolescente quando ouvi, no acaso da conversação, Nataniel Costa evocar esse título mágico e evocador de um dos seus livros: «Le je-ne-sais-quoi et le presque rien» (Paris, Seuil, 3 volumes). Um título complexo e, contudo, imediatamente compreensível! Toda uma arte difícil, subtil e onde o pensamento emerge do labor musical da linguagem.

Jankélévitch é um filósofo moderno a quem nunca faltou a prática retórica e estilística herdada da grande tradição filosófica francesa, de um lado, e da literatura e sensibilidade russas, do outro. Sem nunca ter sido, contudo, um desses filósofos místicos, como o eram tantos autores russos, por vezes admiráveis, que chegavam à França do entre-guerras. Aliás, o seu pai, S. Jankélévitch, foi tradutor para o francês de Berdiaeff e (se não estou em erro) de Chestov.

Não sei se ainda há leitores para esta filosofia: faltam-nos muitas das coisas que habitavam então o ambiente cultural e que favoreciam a sua compreensão. Não falo de uma simples «cultura geral», mas antes de um sábio «à-vontade» cultural, de uma certa desfaçatez na mistura subtil da erudição extrema e da provocação aos hábitos de pensamento.

A obra de Jankélévitch tem dois grandes esteios, que nele estão ligados como o estão os dois hemisférios do cérebro: a obra propriamente filosófica, se assim quisermos, e a obra sobre a música, quase tão extensa quanto a primeira e seu alimento íntimo e fundo. Nesta contam-se livros preciosos como «La Musique et l'ineffable», «La Musique et les heures», «La Présence lointaine», assim como monografias dedicadas a Liszt, Fauré, Ravel, Debussy, Albéniz, Mompou, etc. Estaremos diante de todo um programa musical? Foi muitas vezes sublinhado que Jankélévitch quase nunca escreveu sobre os grandes compositores da tradição romântica alemã, tal como se recusou, a partir de certo momento, a escrever sobre os filósofos de língua alemã. Uma dupla desfaçatez, evidentemente, estranha a qualquer nacionalismo, neste autor francês descendente de judeus russos e que passou à clandestinidade durante a ocupação. Mas trata-se de um certo programa musical para a Filosofia que nunca deixa de ser uma filosofia provinda da música e só na música formulável.

quinta-feira, abril 16, 2015

A arte com carnes e o cozinhado do humano

Em Malmö, no Malmö Konsthall, dois mendigos romenos foram exibidos numa galeria de arte. Suponho que sejam dois seres humanos; suponho também que sejam um homem e uma mulher (Livro do Genesis «oblige») cujas biografias inscrevem, efectivamente, a mendicidade e a condição étnica «rom» ou cigana; suponho ainda que para esta mulher e este homem a exposição a que são submetidos na galeria de arte não seja substancialmente diferente daquela que viveram nas ruas das cidades da Europa. Para serem exibidos (aqui sem «»s) são necessárias as seguintes condições: estarem vivos (mas se algum viesse a morrer subitamente, pôr-se-ia a questão do interesse artístico da morte súbita); subsistirem, antes e depois da exposição, através da actividade que replicam na galeria (há sempre uma mimese nesta «verdade», aqui com contornos paródicos involuntários); não serem demasiado inconvenientes para o público nem para os espaços higiénicos dedicados à arte (aquele branco e aquela zona de circulação devem permanecer virginais).

O subtítulo do artigo do «Babelia», um suplemento cultural e literário que ainda sobrevive com dignidade na imprensa europeia, é interessante: «Tudo, do mais sagrado ao mais profano, se converteu em carne de museu». É interessante mas, provavelmente, equívoco e falho. Porque, na minha perpectiva, a condição da arte contemporânea é um assunto essencialmente arrumado. À arte falta a sensibilidade para o processo da sua própria morte. Ou seja, para a sua corrupção. Embora a morte da arte ande por aqui há dois séculos, e muitos artistas o tenham compreendido, há uma obstinação de cadáver que parece percorrer muitas das instituições artísticas e dos seus agentes.
Já escrevi, noutro lugar, sobre esse artista sueco, simultaneamente exemplar e menoríssimo, que dá pelo nome de Carl Hausswolff. Um oportunista, evidentemente, que teve a brilhante ideia de incorporar cinzas humanas provenientes dos fornos crematórios do campo de Majdanek nas suas pinturas. Mas o oportunismo de Hausswolff é o oportunismo do sistema artístico, incluindo os chamados «especialistas», sejam críticos ou artistas. A propósito da proibição da exibição de alguns quadros seus, estes tiveram a oportunidade de repetir as suas considerações sobre a posição exemplar (de quê e o que é o exemplar em arte?) de Duchamp e a admissão de «objectos» heteróclitos na galeria.

Na verdade, a «denúncia» política e ética efectuada pela arte confunde-se cada vez mais com a leviandade semiológica das populações do mundo globalizado. É cada vez mais um ritual de morte em nome da vida (daí o que há de questionável nesta noção da «carne de museu», corrupção expedita do conceito de carne em Michel Henry). Confunde-se com o fabrico de significação e com a práxis publicitários que tomaram conta das artes, em particular das artes plásticas.
Se a condição da arte contemporânea me parece um assunto arrumado, entregue ao «business as usual», a condição humana não anda longe de vir a estar também arrumada. Talvez no mesmo espaço de armazenamento e reciclagem: uma qualquer galeria de arte próxima de si. Será esse o verdadeiro sentido da «morte da arte» tematizada por Hegel?