segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Situação das "páginas culturais": o inconsciente ex-posto






























A tradição das "páginas culturais" na imprensa escrita portuguesa é já longa e teve os seus momentos significativos em jornais tão diversos como o Comércio do Porto, o Diário Popular, Expresso, o Diário de Lisboa, o Público, entre outros. Há, hoje, evidentemente, uma crise desses conteúdos e do espaço editorial que lhes é dedicado. Em nossa opinião, essa situação não pode ser atribuída à crise geral da imprensa escrita, à concorrência dos novos media, à nova percepção da cultura nos públicos actuais. A crise é, antes do mais, um sinal de leviandade no manejar dos problemas do sentido. O mesmo será dizer, um sinal de pobreza cultural, de "facilidade" em reduzir o sentido, que é problemático, em informação cultural, que surge sempre já resolvida ou resolúvel.

Vejamos um duplo exemplo recente: quase simultaneamente, dois jornais ibéricos (um de língua portuguesa e outro de língua castelhana) dedicaram algum do seu espaço "cultural" à figura e ao pensamento de Martin Heidegger: o Público de 6 de Fevereiro de 2009 e o ABC de 7 de Fevereiro de 2009. O primeiro ocupou, no seu suplemento Ípsilon, algumas páginas com as relações entre nazismo e cultura, a propósito do ciclo do CCB. Aí, podemos ler, em declarações de João Paulo Cotrim a propósito da relação amorosa entre Heidegger e Hannah Arendt, o seguinte: «"Se esta fosse apenas uma história de amor entre um professor com 35 anos e uma jovem com 18, seria igual a muitas que acontecem todos os dias nas universidades", diz. "A questão é que ela é judia, e ele tem um pensamento filosófico que se aproxima muito do nazismo puro. Ele é nazi antes do nazismo"» (Ípsilon, p. 17).

Como conhecemos João Paulo Cotrim, mais nos custa compreender esta "facilidade" em definir o pensamento de Heidegger, a ligação entre filosofia e nazismo, o próprio nazismo e esta curiosa condição de se "ser nazi antes do nazismo". Com um pequeno esforço, talvez JPC pudesse afirmar que o nazismo foi uma espécie de palimpsesto do pensamento de Heidegger!

Por seu lado, o ABCD, suplemento de artes e letras do diário ABC, publica um ensaio de Eugenio Trías elaborado em torno de duas novidades editoriais: o livro No Saber (Poesía), de Jorge Alemán (Demipage, Madrid) e Fernando Ojea, Sentido del Nascimiento y Origen del Sentido (Arena Libros, Madrid). Desde logo, não estamos perante uma distância de 600 km entre os dois periódicos, mas perante a distância entre o discurso cultural aquecido rapidamente em micro-ondas e a cultura produzida a partir da complexa relação que nela se estabelece entre luz e sombra, amargura e prazer, memória e esquecimento.

Trías articula, de forma brilhante, o problema da presença da psicanálise em Espanha («un país en el que la presencia del psicoanálisis no estuvo nunca asegurada») com aquilo que ele designa como duas terríveis amputações: a dupla expulsão, com os Reis Católicos, da vasta minoria judaica e dos mouros já no século XVII. «La ausencia de minorías cultas, especialmente de origen judío, es quizás, una importante clave para entender el desinterés y la falta de motivación que en España ha tenido en ocasiones esa encrucijada entre psicoanálisis y filosofia, tan necessaria para entender la vida intelectual occidental en estos pasajes de modernidad y postmodernidad» (ABCD, p. 22).

Ora, acompanhar essa vida intelectual pede-nos, por exemplo, a capacidade de confrontarmos o pensamento psicanalítico de Freud-Lacan com a crítica à metafísica de Heidegger. De algum modo, Trías já o começara a fazer no seu livro Filosofia del futuro. Escreve ele, sem precisar de produzir afirmações publicitárias sobre "o nazismo antes do nazismo": «Posiblemente es la concepción del Sein zum Tode, ser relativo a la muerte, de Ser y Tiempo, lo que requiere uma revisión a fondo. Debía modificarse la idea heideggeriana del ser en el mundo como Sein zum Tode por la idea de ser para la recreación». Esso significa desplazar el énfasis mortuorio que atraviesa Ser y el Tiempo por una bien distinta: atender, más que a la angustia de la nada ubicada en el sein zum Tode, a aquélla, pensada por Freud en Inhibición, sintoma y angustia, en donde es, más bien, la disposición mediante la cual tiene lugar el acto mísmo del nacimiento. Allí Freud se da cita con Otto Rank (El trauma del nacimiento)» (ABCD, p. 22).

A partir destas aproximações, Trías rejeita a noção de um corte radical entre o biológico e o psíquico, que determinaria o nascimento como um novum radical. Comentando o livro de Fernando Ojea, Trías pode concluir que o carácter prematuro e imaturo do embrião-feto, ao surgir no mundo, mascara uma maturidade ontológica própria de quem acabará por ser sujeito de desejo e de gozo. Heidegger, não será, contudo, totalmente estranho à relação matricial e à sua profundidade acústica: o conceito de Mitsein (também presente em Sein und Zeit), o "ser-com" da relação amorosa, permite-nos reler a própria proto-esfera ontológica que forma a conjunção entre o embrião-feto e a mãe.

Agradecemos ao autor de Lo bello y lo siniestro, a capacidade de, num breve texto de jornal, nos apresentar um ponto de vista sustentado em ligações inteligentes e ousadas. Supomos que nunca lhe ocorreria colocar Hannah Arendt no lugar novelesco da jovem estudante judia que ama um nazi. A gestação ontológica do amor, a problemática do Mitsein, seria um caminho filosófico para lermos essa correspondência entre Heidegger e Arendt que parece queimar tanto as mãos dos bem-pensantes. E esse caminho não estaria deslocado nas páginas de um jornal. Excepto, talvez, no Portugal contemporâneo...

A mulher que nos legou uma teoria do totalitarismo é a mesma que amou e pensou com Heidegger. É também a mesma que escreveu, no seu texto sobre o amor em S. Agostinho, a seguinte passagem: «Todo o bem ou todo o mal é iminente. O que é iminente, na sua última fronteira, é aquilo para que se dirige, incessantemente a vida, é a morte. Toda a presença do homem, determinada por esta iminência, é, efectivamente, um contínuo ainda-não. Todo o ter é determinado pelo medo, todo o não-ter pelo desejo» (Arendt, Der Liebesbegriff bei Augustin, p. 37).