terça-feira, março 03, 2015

Bachelard e a poética da vida material




É uma entrevista realizada dez meses antes da morte de Bachelard. Entrevista televisiva conduzida sem inteligência mas com o fascínio inevitável perante a figura de Bachelard, o sábio que soube habitar essas duas margens hoje tão distanciadas: a da cultura científica e a da vida poética e filosófica. Já deviam parecer intransponíveis para os espectadores que observavam esta figura em 1961: tudo em Bachelard reconduz aos arcanos da imaginação. Mas viver pela imaginação é, precisamente, viver na escala da vida de todos os dias. «Nem sempre é muito cómodo ser-se igual a si mesmo» diz Bachelard quando lhe perguntam o que faz um filósofo. Mas à questão sobre a sua vida quotidiana de filósofo, esse «sonhador», ele responde: «Nunca me vi atrapalhado pela vida material. Sei fazer tudo, não preciso de ninguém. Sei cozinhar. Sou auto-suficiente. E retorque subitamente, perguntando ao entrevistador: «E você ocupa-se da sua vida material?» Talvez, mas certamente muito menos do que o filósofo.

Bachelard vive, quando está em Paris, num minúsculo apartamento pejado de livros e manuscritos. Ora o problema da casa reparte-se por vários dos seus livros, principalmente La Terre et les rêveries du repos e, sobretudo, La Poétique de l'espace. Será esse apartamento infiel ao que ele pensou sobre a verdadeira casa? Sim, certamente que o é. Não, contudo, por causa da sua dimensão ou daquilo que hoje se diz ser a qualidade necessária da «construção civil», os materiais nobres ou os acabamentos. Não. Aquilo que lhe falta neste apartamento é a verticalidade. «É necessário que hajam uma cave e um sótão. Uma cave verdadeira, não uma cave civilizada». Vejamos a passagem em causa da Poétique: «A verticalidade é assegurada pela polaridade da cave e do sótão. As marcas desta polaridade são tão profundas que elas abrem, de algum modo, dois eixos muito diferentes para uma fenomenologia da imaginação. Com efeito, quase sem comentário, pode-se opor a racionalidade do telhado à irracionalidade da cave». Mas é no livro sobre os «devaneios do repouso» que a formulação é a mais feliz e bela: «De resto, colocando-nos dentro do mero ponto de vista da vida que sobe e desce em nós, percebemos bem que 'viver num andar' é viver bloqueado. Uma casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem cave é uma morada sem arquétipos».