quarta-feira, dezembro 03, 2014

A Ideia: uma revista libertária




A Ideia é uma revista de cultura e pensamento que se publica desde 1974. É uma revista anarquista, escrevo-o de forma altissonante. É a revista com que a cultura e o pensamento anarquistas, com mais de um século de presença em Portugal, marcaram a vida cultural e política deste país. É também a demonstração da plasticidade do pensamento libertário, da sua liberdade diante do século ideológico que passou e da sua inventividade diante daquele que começa. Tem sido, nestes quarenta anos, uma das melhores revistas que se publicam em português.

Inicialmente, e durante muitos anos, coordenada por João Freire, um dos raros espíritos livres que enquanto tal atravessaram todas as circunstâncias, é agora editada por António Cândido Franco, amigo querido de muitos percursos -- combates pela ecologia, a não-violência, a defesa da objecção de consciência, os projectos comunitários, a cultura e a vida literária -- a quem endereço daqui uma palavra de reconhecimento pela sua constante fidelidade a esse laço essencial entre a vida do espírito e a presença política e cívica que tão raro se fez na vil existência habitual da nossa sociedade.

O António deu-nos, sem pré-aviso, uma Ideia magnífica, certamente à sua imagem, ou seja, cavaleiresca, poética e rigorosa, no seu número anterior, publicado em Novembro de 2013. São 290 páginas onde o Surrealismo em língua portuguesa é revisitado, entretecido em registos vários, libertado dos mantos vários com que a história da literatura e as perspectivas didácticas o cobriram. De súbito, tudo é fresco nestes setenta anos de presença surrealista! Aqui, não há «grandes» e «pequenos» autores e artistas: frequentemente, os testemunhos recolhidos, os inéditos, as imagens privadas, deixam perceber que as aventuras quase desconhecidas são as mais belas! Tudo nessas páginas estremece ainda por dentro das emoções que adivinhamos neste entendimento das artes como gestos vivos.

Colaborei com A Ideia desde 1984, se não estou em erro. Escrevi sobre os autores que, em cada momento, eram aqueles que mais amava e que mais me libertavam da circunscrição a mim próprio: Blake, Jünger, as poéticas índias, Gary Snyder. A este último devo muito. Devo-lhe «um lugar no espaço», que é talvez o único lugar a que vale a pena aspirar. Então, leitor ávido da Beat generation, a descoberta de Snyder -- autor que em muito extravasa essa filiação -- foi para mim a revelação de uma poética do essencial e do vivo. Através de uma poética e de uma ética que bebem no Budismo, nas tradições poéticas ocidentais e ameríndias, na ecologia que tem as suas raízes no velho anarquismo americano, Snyder fez-me aceder a novas ligações, essas que voltam sempre a encontrar-me quando viro uma esquina da vida. Regresso a ele, por convite do António, trinta anos depois. Regresso ao contacto com esse «concílio de todos os seres», a esse concelho da terra viva, reunido nas palavras. Com um breve texto, «Para um povoamento da vida poética», dou um modesto e marginal contributo ao grande concílio que A Ideia volta a celebrar no seu último número, agora publicado. O António regressa ao surrealismo português, desta vez nas suas manifestações em torno do café Gelo. É o número 73-74, naquela que parece ser a nova periodicidade anual da revista. Entre o Surrealismo e Gary Snyder há uma linhagem que é profunda e na qual poderemos ler certos momentos de explícita aproximação, começando pelos textos que André Breton dedicou às artes dos índios norte-americanos no período do seu exílio, mas onde também serão de compulsar os textos de Artaud e René Daumal. E, como o António aqui lembraria, naqueles de um Pascoaes. Não são todas perspectivas idênticas, mas ecoam no mesmo amor e na mesma transgressão das arrumações literárias.

A Ideia é lançada neste 13 de Dezembro, Galeria Abysmo, Rua da Horta Seca, n.º 40 r/c., em Lisboa.


terça-feira, novembro 25, 2014

Miseráveis de mundo

Está no prelo o volume que reúne as comunicações apresentadas no Colóquio Internacional Paul Celan: From an Ethics of Silence to a Poetics of the Encounter. Este colóquio constituiu uma rara oportunidade para a partilha de perspectivas sobre uma poesia tão profundamente rasgada pelo nosso tempo. Neste volume encontra-se um ensaio que escrevi sobre o encontro entre Celan e Heidegger, um dos mais elevados e difíceis diálogos entre poesia e filosofia, no qual estas duas visitações do que importa já não correspondem às concepções vulgares que delas temos. Intitula-se: «Miseráveis de mundo. Impossibilia a dois». Reproduzo aqui um excerto deste.



A noite do século XX é aquela que ainda vivemos em certos signos do tempo. Embora já fora do século XX, esta vivência pertence-nos e só nos abandonaria se pudéssemos abarcar-lhe o movimento. A noite do século XX pertence à História sem nela poder ser determinada. É uma noite historial já que o seu tempo só é o nosso se nos desligarmos do seu correr, embora toda a pergunta por esse desligamento esbarre numa projecção, numa pró-tensão sem origem determinável, que é já a da sua finição. A sua de-finição é um movimento de esvaziamento nocional, porquanto o sentido do acontecer histórico não pode nunca sair da própria categoria que o gerou e alimentou. Daí que o «século XX» seja uma figura metafísica da História, supremamente efectiva, a mais terrível de todas[1]; os sonhos do fechamento do sentido são nela uma experiência histórica e eideticamente objectivada. A progressiva compreensão disto situa o «século XX» de Heidegger. Da tematização das «antecipações constituintes» possibilitadoras de um Dasein histórico verdadeiramente fundado[2] à compreensão de como a linguagem foi aqui, e desde há muito, entretecida na constituição histórica de uma disposição (de «dispositivo») dos objectos, tudo isso conduz Heidegger a um programa filosófico que visa arrancar a linguagem a esse dispositivo, que Heidegger viu de bem perto, o que permitiria voltar a escutar algo novo nela – o «silêncio», como dirá Celan – que não é mais do que a latência na linguagem ou, noutro registo, a vida na morte.
A historialidade abre certos espaços, determina certos actos de espaçamento, a que poderíamos dar o nome de poéticos ou próprios do pensamento, que fazem de toda a consciência do tempo uma consciência simultaneamente eclodida e encerrada. Na nossa perspectiva, como já dissemos, a relação entre Celan e Heidegger é mais devedora dessa historialidade e do seu mistério próprio do que da própria vida na história destes interlocutores. As suas vidas são, aliás, no plano do contacto com os acontecimentos do século, desastrosas em modos e com responsabilidades diversas. Mas pergunta-se: como não entender que da Bucovina à Baviera, esses anos trinta ligaram esses destinos em torno da palavra «destruição» (a Destruktion), desde aí, para ambos, a palavra do século? Ora, se a destruição é aquilo que fixa os destinos, a violência, precisamente o que arranca os homens e as mulheres ao seu destino, é aquilo que pode continuar a gerar a palavra.
A destruição é um problema inscrito no coração do humanismo e não um fenómeno que se dá apenas quando este se encontra debilitado. O humanismo tenta inscrever o humano, enquanto categoria excepcional, na própria vida. Afirma, portanto, a compatibilidade entre um fenómeno irrepetível e excepcional – o humano – e um fenómeno generalizado e plástico – a vida. Convém dizer que tanto Heidegger como Celan rejeitam claramente o contexto humanista que conduziu a cultura ocidental até ao presente. Essa rejeição tem fontes diferentes, como todos sabemos, mas o que importa sublinhar é precisamente o facto de este encontro constituir uma convergência de dois olhares profundamente cépticos relativamente a uma tradição baseada na sustentação da polis humana em certas aquisições tomadas como historicamente determinadas pela excepcionalidade ontológica do ser humano. O humanismo não é, para estes, um problema do antropocentrismo clássico, mas antes algo que deriva do produtivismo que inscreve o homem a partir da sua imagem esvaziada, a sua exo-inscrição no mundo. A pergunta a que o humanismo deixou de poder responder no presente é a pergunta sobre esse esvaziamento. Diante das respostas que os totalitarismos do século vinte lhe deram, o silêncio do humanismo poderia parecer-nos sensato. A fim de inscrever o humano, o humanismo foi historicamente obrigado a produzir constantemente a figura do homem. Durante muito tempo, predominou a ilusão de que esta figura poderia ser uma figura essencialmente espiritual, inscrita no interior da estátua humana. Aí, o humanismo seria sempre uma estética que transpareceria na presença do homem. Foi não tomar em conta o problema da desmesura: inscrever o homem é inscrever a desmesura da sua doença.


[1]  Figura diante da qual, como perguntava Heraclito, nos interrogamos como é possível escondermo-nos daquilo que não tem ocaso. Cf Heidegger, «Aletheia».
[2] Cf. a primeira versão da conferência sobre a obra de arte (1931-1932). «Vom Ursprung des Kunstwerkes. Erste Ausarbeitung». In Heidegger Studien, vol. 5. Berlim: Duncler & Humblot, 1989.


sexta-feira, julho 04, 2014

A comunidade poética das culturas








O centenário de Octavio Paz passou em silêncio entre nós. Trata-se de um silêncio que diminui a poesia porque o nome de Paz é sinónimo de um expansionismo poético insuportável para todos os poderes que submetem a palavra. E o escândalo que aqui exprimo não é um tributo ao Nobel que lhe atribuíram. Neste caso, o Nobel da literatura circunscreve este nome, sinónimo das facetas múltiplas da paixão, e não apenas das literárias, nome de cantor poético do que de vivo e morto forma o universo. Este mexicano que se entregou à paixão das culturas ameríndias, ao culto das poéticas orientais, aos enigmas da flora verbal e da carne erótica é um poeta que devemos reivindicar para a esfera da nossa literatura, porque, a partir desta, o convidam um Padre António Vieira ou um Garcia da Orta, um Pessanha ou um Wenceslau, Pessoa, decerto, mas também António Barahona ou tantos outros que conheceram essa estranha doença quimérica que atinge alguns latinos dados ao balanceamento frágil entre os céus plúmbeos das américas e os os vapores samsáricos do oriente.




Paz foi um poeta de língua castelhana, evidentemente. E um dos maiores do último século. Um poeta das américas, nascido à sombra das pirâmides astecas, que respirou o ar fresco e rescendente das igrejas da Contra-Reforma e, diante delas, viu passar a folia da morte. Um homem assim teria de ser um habitante da poesia que, escutado a partir da cultura portuguesa, podemos reconhecer imediatamente. Foi precisamente essa a decisão de Paz: habitar o mundo como quem vive a poesia nas suas múltiplas latitudes. Melhor: um habitante da poesia que assim desflora o mundo e lhe saboreia os múltiplos gomos. Porque a terra da língua, quando a abrimos com os dedos, verte sucos e aromas variados que se misturam. Ora, o acto poético é, nele, uma operação de tradução. E, por seu lado, a tradução só pode formar-se como poema. Daí que Octavio Paz seja o poeta que faz amor com as culturas, tal como Ezra Pound fora, antes, aquele que as punha a cantar em concílio: o autor dos Cantos já mostrara que a tradução é uma acção indistinguível da criação poética, mas demonstrava-o, no seu caso, tomado por nostalgias e violências muitas diversas.


Paz viveu nas Américas, na Europa e na Ásia. Trata-se de um dado essencial para reconstruirmos a sua crença trinitária na poesia. Chegado à Europa, nos anos trinta, a amizade com André Breton era inevitável: esses dois homens tinham descoberto, ao mesmo tempo, que a alma do mundo era a sua alma primitiva e que, no centro de ambas, estava o amor, os seus ardores, a sua festa erótica e roída pelos vermes da terra. No seu El Arco y la lira, diz: «O amor é um estado de reunião e participação, aberto aos homens: no acto amoroso a consciência é como a onda que, vencido o obstáculo e antes de se despenhar, ergue-se numa plenitude em que tudo – forma e movimento, impulso para o alto e força da gravidade – alcança um equilíbrio sem apoio, sustentado em si mesmo» (Obras Completas 1, Fondo de Cultura Económica, p.18). Esse estado de equilíbrio precário deve lembrar-nos as poéticas portuguesas e o seu «centro móvel», «uma maneira de assegurarmos a continuidade do nosso passado ao transformá-lo em diálogo com outras civilizações. Continuidade e diálogo ilusórios: tradução: transmutação: solipsismo» (El Signo y el garabato, Seix Barral, p. 156). 


Ele próprio conta como, por um acaso que nunca tinha antecipado, enquanto exercia um modesto cargo diplomático em Paris, que lhe permitia ser escritor dentro daquele conforto de que usufruem todos os que se entregam às vilegiaturas míticas da cultura moderna, foi inesperadamente transferido para a Índia. Este encontro deu origem a um dos seus mais belos livros, El Mono gramático, evocação do macaco sagrado do Ramayana: «Hanuman: mono/grama da linguagem, do seu dinamismo e da sua incessante produção de invenções fonéticas e semânticas. Ideograma do poeta, senhor/servidor da metamorfose universal: macaco imitador, artista das repetições, ele é o animal aristotélico que copia o natural, mas é também a semente semântica, a semente-bomba enterrada no subsolo verbal, que nunca se converterá em planta que aguarda o semeador, mas numa outra, sempre numa outra. Os frutos sexuais e as flores carnívoras da alteridade brotam do único caule da identidade» (Le Singe grammairien, Skira, p. 130).

Esta rotação de signos permite a rotação das culturas. Em El Laberinto de la Soledad, talvez a sua obra mais conhecida, Paz opôs-se energicamente a um conjunto de intelectuais mexicanos que procuravam definir a sua cultura nacional a partir de um ponto de vista ontológico – o «ser mexicano». Escreveu ele: «A mim intrigava-me (intriga-me), não tanto o ‘carácter nacional’, mas sim o que oculta esse carácter: aquilo que está por detrás da máscara. Nesta perspectiva, o carácter dos mexicanos não cumpre uma função distinta daquele de outros povos e sociedades: por um lado, é um escudo, um muro; por outro, um feixe de signos, um hieróglifo» (El Laberinto de la soledad, Cátedra, p. 364). Advertência àqueles que procuram o carácter português como se nele não houvesse esse jogo de máscaras.


Estivesse no México, na Europa ou no Rajastão, Octavio Paz associou sempre a experiência poética à vivência de identificação mais íntima com o que chamamos o «real». Pela poesia, «o universo deixa de ser um vasto armazém de coisas heterogéneas. […] A poesia põe o homem fora de si e, simultaneamente, fá-lo regressar ao seu ser original: devolve-o a si. O homem é a sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a ser – é. A poesia é a entrada no ser» (ibidem, p. 51). O nosso José Augusto Seabra também foi embaixador na Índia e escreveu um Caminho íntimo para a Índia. Se nem tudo é semelhante neles, é-o certamente a comum leitura poética da viagem no mundo. O labirinto dos portugueses, que é talvez o da saudade, sendo ainda o mesmo, tem certas violências em surdina que lhe são próprias. Ditas por um Pessoa que ambos souberam escutar.

Jorge Leandro Rosa
publicado em As Artes entre as Letras, Porto, nº 121. 30 de Abril de 2014


quarta-feira, abril 09, 2014

O canto dhrupad


O canto dhrupad, que sofreu um ocaso durante o século XX, é hoje cultivado por nomes como Ustad H. Sayeeduddin Dagar. Este mantém viva uma tradição que vem dos Vedas, quer dizer, de uma cultura religiosa e artística do Neolítico. Escutamos a origem do que somos por herança indo-europeia. E escutamos algo da ressonância do Universo.

Tenho a gravação, em CD, do concerto dado na Basílica Sainte Marie-Madeleine de Vézelay, no dia 31 de Julho de 2005. Encontro-a agora nesse lugar de sombras chamado «You Tube». Tanto um suporte como o outro são pálidas evocações do que aí aconteceu. Se recordarmos o sentido védico das origens do canto dhrupad, poderemos, talvez, encontrar um lugar para a escuta.

Om Antanran Tom, Taarni Tom, Hananat Hariom Narayan, Hananat Hari Om.
«Ó Deus, estou perdido num mundo de trevas sem fim, ajuda-me a encontrar o caminho para dele sair.»


segunda-feira, abril 07, 2014

Tolstói e a cultura do livro








Neste mundo globalizado, onde o discurso sobre a disponibilidade da informação, a toda a hora e em qualquer lugar, é repetido com uma enorme ligeireza, haveria necessidade de nos interrogarmos sobre o que significam tais afirmações. É que a «informação» sempre esteve à nossa volta, a toda a hora e em qualquer lugar, pela simples razão das nossas existências decorrerem no mundo e de sermos «macacos gramáticos», como dizia Octavio Paz. Desde logo, a natureza é essa «informação» e qualquer cultura humana, da mais arcaica à contemporânea, sabe vivê-la. Suspeito mesmo que o mundo natural tenha sido, nas culturas do paleolítico, muito mais compreensível do que é hoje. A transição posterior entre dois planos culturais, da compreensão mítica para o legível, veio empobrecer a «informação» que pode ser vivida no contacto com aquilo que os ocidentais chamaram a «natureza». E, no entanto – dir-me-ão – nunca a ciência esteve tão próxima de decifrar os segredos da natureza, nunca tanta informação foi acumulada. Acontece que essa «decifração» não equivale a uma leitura integrada na natureza. Ela visa, mais do que nunca, explorar esse mundo como recurso, não uma sabedoria viva do mundo, não a sua constituição como gramática viva.


O que quero dizer é que, no mundo globalizado onde vivemos, a informação deixou de corresponder a uma cultura onde a natureza era o livro essencial. Deslocamos, portanto, o mundo. Refazemo-lo há já alguns milénios: pelo menos desde o aparecimento da escrita. Construímos ecologias culturais que vieram articular de outro modo as vivências e que são, também elas, sistemas frágeis que exigem tempo e respeito. Toda a cultura é frágil. Paralelamente, todo o processo de mudança aí ocorrido se aproveita dessa fragilidade para obter um ganho. É verdade que as culturas humanas – sobretudo na modernidade – admitem a transformação. Mas, na cultura globalizada de hoje, a transformação impõe-se a partir de um ponto de vista que se tem vindo a autonomizar dessa herança cultural. A possibilidade técnica é, aqui, uma outra possibilidade cultural. No entanto, todos podemos viver em diversos ecossistemas culturais e que só essa pluralidade de mundos faz sentido.


Haverá, assim, que ser cuidadoso quando falamos da disponibilidade universal dos textos, na sua circulação online. Um texto não é nunca, por si só, um livro. Deveremos perder os livros para dar a todos (todos os) textos? E o que acontece, aí, aos modos de compreensão? Temo que possa acontecer algo semelhante àquilo que se passou com os entes naturais quando saímos do mundo mítico. Não cabendo aqui introduzir a complexidade destes debates, quero apenas sublinhar, energicamente, a necessidade de preservarmos a cultura do livro, o seu ecossistema e o mundo de que ele é a habitação e o dédalo. Mesmo com o online. Mas sabendo que o online é hoje uma das expressões do poder e da sua fluidez. O poder de tornar irreconhecível aquilo que aprendêramos a ler.


A cultura do livro vai resistindo, embora mal, num país como Portugal, que passou quase directamente do mito para o online (creio ser esse o significado antropológico da modernidade portuguesa). Há um domínio no qual podemos verificar com clareza o estado da cultura do livro: a tradução. Esta foi sempre um parente pobre na edição em língua portuguesa. Há poucas traduções e muitas daquelas que existem são de má qualidade. Durante muito tempo, e na medida em que a circulação do livro se restringia a uma minoria que tinha acesso ao livro estrangeiro, esta questão foi menorizada como indicador civilizacional. Mas hoje, apesar do alargamento da escolarização, as pessoas já não lêem no original os livros «difíceis», aqueles que importam para essa cultura do livro. Ou procuram nas redes versões pouco fiáveis desses livros, em versão escrita num inglês pobre. Em breve, em tradução maquínica.


Em Portugal, onde quem está no ensino conhece o estado degradado da cultura do livro, deu-se, no início deste ano, um acontecimento inédito na edição, um acontecimento pasmoso, diria: tornou-se possível escolher entre duas traduções recentes de enorme qualidade de um livro do cânone ocidental, o Guerra e Paz de Lev Tolstói. Depois de versões traduzidas do castelhano e do francês, temos duas traduções feitas directamente do russo. Aquela de Nina e Filipe Guerra, publicada pela Presença e saída em 2005, e a de António Pescada, publicada agora pela Relógio d’Água. É excessivo? De modo nenhum! É o estado mínimo da nossa necessidade enquanto cidadãos que ainda dependem da ecologia do livro. Porque as palavras de Tolstói, que estão vivas em português, mudam connosco, seus leitores: «Entre as inúmeras categorias em que se pode dividir os fenómenos da vida, é possível destacar aquelas em que predomina o conteúdo e aquelas em que predomina a forma» (Guerra e Paz, livro III, Presença, p. 144). A forma, na existência do livro, é um aspecto fundamental deste: o livro permite afirmar e diferenciar uma presença. Ora, essa presença é laboriosa: no caso da tradução, ela tem uma história por detrás de si e surge no interior de uma metamorfose que é também a nossa. Mas é este exemplo de um caule vicejante indicativo de um adquirido irreversível? Infelizmente, não. Os mesmos Nina Guerra e Filipe Guerra tinham dado início, na Presença, em Julho de 2011, às Obras de Mikhaíl Bulgákov, publicando a tradução portuguesa de A Guarda Branca (1924). Desde então, não houve continuidade. Sublinho que Bulgákov é, tão só, o maior prosador do século XX russo. Precisamos urgentemente desse enxerto áspero e céptico na nossa língua literária.

Publicado em As Artes entre as Letras, nº 117, 26 de Fevereiro de 2014


quinta-feira, fevereiro 20, 2014

Sans souci





Sans souci

As nossas memórias mais verdadeiras do encontro com a arte são aquelas oriundas da descoberta precoce, quando nos deparamos com aquilo que nos entontece e surpreende. Como se pudéssemos descobrir obras sem termos ainda tomado conhecimento que nós próprios somos nascidos. Aí, a partir do íntimo, sabemos que o que vemos se instala em nós sem ter sido convidado.
O que é forte é a ignorância e não o saber. Somos surpreendidos pela clareza dessa ignorância. Se, nesse momento, se forma um laço entre a verdade e a arte, esse laço terá de ser um erro, cometido por virtude de uma falta inscrita na vida: algo que resistirá, daí em diante, a toda a educação e a toda a inteligência. A arte não é um preenchimento mas a formalização de uma puerilidade desnuda. Assim despidos, poderemos tomar duas orientações: uma vulgar, que acumula sentido nos encontros com as obras; uma outra, ignorante, que se esvazia nas obras com que deparamos. Passaremos, assim, toda uma vida a corrigir o erro que afirmou certo dia a presença da arte e que é paralelo àquele em que nos vão dizendo que também nascemos. Há aqui um engano precioso.
As artes não cabem na construção das vivências. As artes só vêm ao mundo na medida em que revelam o verdadeiro processo do nascimento e se substituem, assim, à impressão vulgar e cega de termos nascido. E julgo que só aí o erro da arte se forma como o aviso – sempre urgente mas duvidosamente útil e efémero – de que a vida decorrerá num equívoco. Rapidamente, passaremos a envergonhar-nos desses pequenos erros de apreciação e tomá-los-emos por fragmentos sentimentais da infância.
Lembro-me de estar sentado junto da minha mãe, que me comprava os fascículos de uma História da Arte que ainda tenho na biblioteca. Conservo-a, embora não a consulte espontaneamente, já que adquiriu um daqueles estatutos iniciáticos que persistem por serem sumamente misteriosos. No meu orgulho pueril de lhe mostrar a minha aquisição dedicada às «belas-artes», deparámo-nos, na página trinta e dois, com a reprodução do «Cântaro Quebrado» de Greuze. Pressinto, logo no momento em que ela vira a página, uma reticência na minha mãe, uma desaprovação que não percebo. Lembro-me da luz de fim de tarde na sala e de como esta foi abandonada pelos cambiantes quentes que tivera no instante anterior ao virar dessa página. Ela via neste quadro – uma obra anterior à Revolução – uma alusão equívoca que lhe desagradava. Confesso que não percebi e que a acusei, intimamente, de incompreensão. Algo se quebrou nesse momento – injusta e silenciosamente – entre mim e a minha mãe. Talvez o segredo de um nascimento partilhado que não admite a intromissão da arte. A arte é aquilo que se expõe num mundo onde os seres já se encontram apesar de tudo.



A ignorância era minha: Greuze era um pintor que explorava um sentimentalismo que não dispensava a sugestão sexual nas suas meninas púberes. Uma Lolita setecentista? Havia-as abundantemente na cultura da época. Mas tudo nela evocava esse dilema que o convívio com as obras de arte nos coloca agudamente e que Kandinsky recordou ao afirmar que «a filosofia do futuro, além da essência das coisas, estudará também o seu espírito com particular atenção». O que entender aqui por «espírito»? O espírito de uma obra é aquilo que a nega a partir de dentro, que a nega como construção reconhecível, para dela só nos dar algo que a recusa activamente. Daí que a estética futura só possa apresentar-se como ciência da recusa em arte. Ora, Greuze já o fazia sem espírito, quer dizer, sem saber que a recusa é o princípio do nascimento do objecto artístico que se dá a ver, a negação da nossa presença carnal.
Essa obra algo menor sucedia-se à reprodução, que se estendia em dupla página, do Embarquement pour Cythère, de Antoine Watteau. Os nomes dos chamados pintores galantes do século XVIII não me diziam nada até que descobri, na adolescência, o Museu Calouste Gulbenkian e, aí, um dos quadros da minha vida: Le Tapis Vert, de Hubert Robert, o pintor que melhor captou a lição espiritual de Watteau. O que neste decorre é estranhamente confuso e ordenado: é a natureza no seu aparente bucolismo, mas o convívio entre estátuas do passado e personagens quotidianas diz-nos que esta beleza é um erro. Um erro que pareceria benigno, não fossem as ramadas de árvore quebradas e arrancadas. Estes quadros são ainda, para mim, a representação do erro que é a arte. Por isso os amo.
Muitos anos depois dessa tarde, pude visitar o Pavilhão de Sanssouci, em Potsdam. Conhecia, há décadas, graças à minha História da Arte, a imagem mítica do pequeno palácio sem preocupações de Frederico o Grande. É que – verifico agora com espanto –, logo na página treze desse mesmo volume está a fotografia do centro da fachada onde se inscreve a divisa sans souci, encimando os atlantes e as cariátides que fingem sustentar a cúpula. Um lugar dedicado às três coisas que constituem um refrigério na vida do monarca iluminado: a natureza, as artes e a filosofia. Uma das minhas grandes expectativas nessa visita era a profusa colecção de obras de Watteau, pintor preferido, ao que consta, do rei iluminista. Watteau mistura-se, ao longo das salas, com a decoração característica da época e com a sua falsa despreocupação. Mistura-se aí a vida certa do Pavilhão com a vida errada das personagens de Watteau. Por isso, ele tornou mais sublime o erro que a arte nos volta a contar uma e outra vez. O meu erro infantil era, afinal, o erro de Frederico da Prússia. Deveria poder dizê-lo hoje à minha mãe.

Crónica publicada em «As Artes entre as Letras», 15 de Janeiro de 2014