terça-feira, setembro 12, 2017

Já viram um grande navio?

«Já viram um grande navio de carga deslizar na baía numa tarde sonhadora e enquanto espraiam os olhos ao longo de toda a serpentina de ferro em busca de pessoas, marinheiros, fantasmas que devem estar a manobrar este navio de sonho que corta tão suavemente as águas do porto com a proa de aço de focinho apontado aos Quatro Ventos do Mundo não vêem nada, ninguém, vivalma?»

 Esta interpelação de Jack Kerouac, que data verosimilmente da década de 1950, abre o conto «Moços do Mar da Cozinha». Todo percorrido pela sua escrita sem pausa para respirar, nesse longo fôlego lírico que aspira a perder-se no espaço aberto, ele fala-nos do fim dos sonhos associados à navegação. Acabava então, e de vez, a era dos veleiros e a sensação da viagem como vida embalada nas ondas, uma vida suspensa, inatingível diante da vulgaridade da existência em terra, incompreensível para aqueles que nunca embarcam. Neste conto incluído no seu Lonesome Traveler (1960), Kerouac faz o elogio melancólico dos moços de bordo nos cargueiros, que se lançam à viagem como quem se lança ao mar na esperança de afogar-se numa matéria mais pura do que a terra asfaltada que deixam para trás. Estes cargueiros ainda sentiam o mar, ainda sabiam a mar, a ferrugem era neles visível, o tempo da travessia era neles tão claro quanto o cansaço num rosto. Grande autor de haikus, essa forma poética da síntese inútil, Kerouac deixa-nos no seu conto um dos melhores já escritos no Ocidente:
Inútil, inútil!
Chuva forte caindo
No mar!
Onde estão hoje estes cargueiros, que acolhiam e davam emprego ao mais desesperado dos homens? Tornam-se raros, muito raros, já que o mar se transformou na nova frente da industrialização. Os navios passaram a ser de três tipos, se exceptuarmos os navios militares: navios-fábrica das matérias-primas do mar; navios-espanta-tédio para falsos viajantes e navios-caixote das mercadorias inúteis da globalização. Quando nem já no mar podemos ter sonho, angústia, solidão e saudade, algo deixou definitivamente de ter lugar no mundo, algo que entrega toda a literatura escrita até meados do século passado à inutilidade das coisas incompreensíveis. Os cargueiros, em particular, esvaziaram-se dos seus fantasmas, para não serem hoje mais do que estruturas mecânicas de uma rede de trocas incessante.

Falo de tudo isto porque voltei a sonhar embarcar num cargueiro, desses que já quase não existem, para viajar em direcção a uma ilha onde alguém me espera. Sei bem que é quase um lugar comum da literatura ocidental. Mas poucos lugares-comuns foram mais poderosos ou marcaram mais a sensibilidade. Nessa ilha há alguém que eu gostaria de vir a reencontrar por meios vagarosos, desses que me permitem antecipar o encontro distanciando-me de toda a vulgaridade da vida em terra. Os actuais cargueiros de contentores dizem apenas uma coisa: que não há vida fora da incessante prática das acções lucrativas. Num desses cargueiros, a contabilização lucrativa de cada minuto aí passado não é menor do que aquela que rege tudo o que se move, respira ou existe em terra seca. Neste contexto, o amor corre sérios perigos, já que deixou de ser sustentada a homologia entre lançar-se ao mar e a entrega amorosa. O desejo ou a saudade perderam realidade expressiva por não corresponderem a uma lógica de consumação, já que sempre exprimiram a falha do projecto amoroso, o verdadeiro segredo dos amantes. Como os marinheiros, os amantes aspiram à inutilidade perfeita.

«Mas oh é tão típico dos homens do mar nunca fazerem nada, limitarem-se a ir a terra com dinheiro nas algibeiras e vaguearem estupidamente de um lado para o outro e até com uma espécie de desinteressada mágoa, visitantes de outro mundo, uma prisão flutuante, de roupas civis de um aspecto muito desinteressante.»