terça-feira, agosto 07, 2018

O filme em que a mudança climática não é o pretexto

 
Sendo mais um dos muitos filmes produzidos no circuito mainstream americano, mesmo que acima da média em termos de qualidade cinematográfica, No coração da escuridão terá tido uma recepção que não assinalou no filme nada de muito singular, com excepção da finura cinéfila nele exibida pelo seu realizador. Os nossos críticos foram «cegos» ao seu sentido ecológico, aí traduzido com particular sensibilidade e consciência da situação actual, razão porque aqui apresento uma breve nota de visionamento dirigida aos leitores com preocupações ambientais, cinéfilos ou não.
 
Fui há dias ver o filme de Paul Schrader, First Reformed, cujo título português, «No coração da escuridão», como já é tradição entre nós, torna genérico o que tinha ressonâncias bem precisas. «First Reformed» é a designação de uma velha Igreja reformada de origem holandesa, hoje quase vazia, que está ao cuidado do pastor Ernst Toller. Quase transformada em espaço museológico, parece um memorial de um tempo em que o Homem habitava um mundo que fazia sentido. Se o mal-estar de Toller já emergia do seu passado pessoal, ele encontrará na mudança climática uma avassaladora vivificação do seu sofrimento e interrogações. É essa a grande força do filme: longe de encerrar o acontecimento climático no discurso hesitante ou casuístico que lhe tem sido geralmente dedicado, ainda uma espécie de fenómeno «à parte» no âmbito ambiental, Schrader deixa-o percorrer o filme, dando a ver a força disruptiva com que ele nos atinge hoje, a estranheza que nos traz, a denegação que o acompanha em grande parte da sociedade. 
 
Todo o filme é percorrido pelo fundo da presente degradação ambiental, de que a mudança climática aparece como uma epifania que atinge Michael e Mary, o casal ecologista, e Toller, o pastor. A epifania dá-se quando o entendimento de um fenómeno já presente ascende ao estádio da compreensão súbita. Michael e Mary partilham as mesmas convicções, como ela diz, mas estas, no seu estádio epifânico, desembocarão no suicídio daquele e na maternidade desta. Não preciso de explicitar mais longamente o quadro simbólico dado pelo nome da personagem. O pastor Toller, por seu lado, aniquilado desde a morte do filho no Iraque, só poderá experimentar o regresso à vida na súbita compreensão da convergência dos desastres ambientais. Esta pluralidade epifânica parece-me ser uma excelente forma de traduzir o carácter aparentemente abstrato e contudo violentamente concreto da mudança climática extrema. Aspecto notável: através de subtis indicações cénicas (como a secretária e o computador de Michael), percebemos que o filme não centra a sua visão da mudança climática nas teses que a entendem como fenómeno distendido no tempo: ela habita o presente e transforma agora o mundo que julgáramos conhecer.
 
A mudança climática é um despertar de forças e elementos que nos envolvem, uma espécie de fenómeno sintético de todas as agressões humanas ao planeta. Mergulhados nelas, longamente esquecidos da sua presença e potência, vemo-la chegar de todo o lado sem percebermos inteiramente a nossa nova condição e o fim de um mundo que julgáramos minimamente estável. First Reformed é o oposto do clássico filme-catástrofe, onde uma ameaça pontual irrompe subitamente sobre as nossas cabeças. Aqui, a ameaça está já entre nós, é parte de um presente que quase todos tentam contornar ou mesmo ignorar. E há um conluio entre empresas destrutivas e igrejas que delas recebem apoios. Como ser perturbado e habitado pela dúvida, Toller isola-se na sua Igreja-Museu, adquirindo assim um recuo notório em relação à hipocrisia da sociedade à sua volta. A mudança climática é a ameaça ambiental última: concretiza os nossos piores receios perante as agressões contínuas ao ambiente; reúne-as numa nova entidade cuja escala parece ultrapassar-nos. Precisamente por isso – e o filme não o esquece – a condição do activista ambiental torna-se particularmente difícil: nunca como hoje tivemos tanta informação sobre o percurso catastrófico das nossas sociedades (na casa de Michael todos os gráficos afixados na parede são bem identificáveis e reais, incluindo a curva exponencial do CO2, verdadeira fotografia do nosso tempo); nunca como hoje as ameaças se entrelaçam umas nas outras ao mesmo tempo que a sociedade escolhe maioritariamente a fuga em frente.
 
O pastor Toller, que logo na abertura do filme escreve o seu diário, seguindo o modelo clássico do filme de Bresson, Diário de um Pároco de Aldeia, não tem ainda o conhecimento desse processo, mas está preparado para algo de que não sabe ainda o nome. Perdeu o sentido da sua própria vida e ganhou a capacidade de ver o sentido do que acontece «atmosfericamente» à sua volta. Depois do suicídio de Michael, Toller apropria-se de um conjunto de elementos do percurso daquele: o computador, os documentos, o colete-bomba. Através do computador no qual Michael fizera a sua via crucis, Toller caminhará até ao mais fundo de uma situação aparentemente perdida. Esta transmissão é fundamental: não bastaria que Toller fosse procurar à rede as informações que tanto angustiavam Michael: é preciso um transporte comum porque se trata, não da partilha de informação (e os breves encontros entre ambos não tratam dela, mas da angústia e do espírito), mas da partilha de uma revelação. Este percurso quase «iniciático» do protagonista contém, a nosso ver, uma preciosa intuição do realizador: a informação sobre a mudança climática, hoje amplamente disponível, mas objecto constante de contra-informação (de que vimos em Portugal o último e desajeitado exemplo no jornal Dia 15, de Junho-Julho), não é um desencadeador suficiente da nossa acção. É necessário que ela venha acompanhada de uma reflexão, se não mesmo de uma introspecção, já que a sua significação é radical e põe em causa o modo como vivemos, o que para muitos equivale a pôr em causa o seu propósito na vida.
 
Situado na América do Norte, onde a mudança climática é ainda polémica, ficamos agradecidos pela aparição deste filme nas nossas longitudes europeias, onde, não aparentando ser polémica, a tecnocratização da questão pelo Acordo de Paris tem tido o condão perverso de a entregar às «forças do mercado» e à burocracia de Bruxelas. Enquanto isso, a população europeia vive embalada e infantilizada pelas promessas da economia circular e pela expansão contínua e delirante dos seus níveis de consumo. Neste quadro, as personagens de First Reformed podem parecer-nos tomadas por um excesso agónico incompreensível. Será, talvez, preciso ir onde Michael foi – seriam os campos de extracção por fracking? As areias betuminosas do Canadá? – e poder ver a nossa condição real. Mas tal não é estritamente indispensável. Se olharem os céus, não verão mas sentirão as correntes que se alteram e tudo expõem à resposta terrestre que não esperávamos. O que se segue será impossível não o ver ou sentir. Como neste Verão, singular como todos os que virão.
 
A mudança climática não é o pretexto deste filme: é o estado do nosso mundo. 
 
 
(texto destinado à mailing list «Futuro-Terra»)

terça-feira, setembro 12, 2017

Já viram um grande navio?

«Já viram um grande navio de carga deslizar na baía numa tarde sonhadora e enquanto espraiam os olhos ao longo de toda a serpentina de ferro em busca de pessoas, marinheiros, fantasmas que devem estar a manobrar este navio de sonho que corta tão suavemente as águas do porto com a proa de aço de focinho apontado aos Quatro Ventos do Mundo não vêem nada, ninguém, vivalma?»

 Esta interpelação de Jack Kerouac, que data verosimilmente da década de 1950, abre o conto «Moços do Mar da Cozinha». Todo percorrido pela sua escrita sem pausa para respirar, nesse longo fôlego lírico que aspira a perder-se no espaço aberto, ele fala-nos do fim dos sonhos associados à navegação. Acabava então, e de vez, a era dos veleiros e a sensação da viagem como vida embalada nas ondas, uma vida suspensa, inatingível diante da vulgaridade da existência em terra, incompreensível para aqueles que nunca embarcam. Neste conto incluído no seu Lonesome Traveler (1960), Kerouac faz o elogio melancólico dos moços de bordo nos cargueiros, que se lançam à viagem como quem se lança ao mar na esperança de afogar-se numa matéria mais pura do que a terra asfaltada que deixam para trás. Estes cargueiros ainda sentiam o mar, ainda sabiam a mar, a ferrugem era neles visível, o tempo da travessia era neles tão claro quanto o cansaço num rosto. Grande autor de haikus, essa forma poética da síntese inútil, Kerouac deixa-nos no seu conto um dos melhores já escritos no Ocidente:
Inútil, inútil!
Chuva forte caindo
No mar!
Onde estão hoje estes cargueiros, que acolhiam e davam emprego ao mais desesperado dos homens? Tornam-se raros, muito raros, já que o mar se transformou na nova frente da industrialização. Os navios passaram a ser de três tipos, se exceptuarmos os navios militares: navios-fábrica das matérias-primas do mar; navios-espanta-tédio para falsos viajantes e navios-caixote das mercadorias inúteis da globalização. Quando nem já no mar podemos ter sonho, angústia, solidão e saudade, algo deixou definitivamente de ter lugar no mundo, algo que entrega toda a literatura escrita até meados do século passado à inutilidade das coisas incompreensíveis. Os cargueiros, em particular, esvaziaram-se dos seus fantasmas, para não serem hoje mais do que estruturas mecânicas de uma rede de trocas incessante.

Falo de tudo isto porque voltei a sonhar embarcar num cargueiro, desses que já quase não existem, para viajar em direcção a uma ilha onde alguém me espera. Sei bem que é quase um lugar comum da literatura ocidental. Mas poucos lugares-comuns foram mais poderosos ou marcaram mais a sensibilidade. Nessa ilha há alguém que eu gostaria de vir a reencontrar por meios vagarosos, desses que me permitem antecipar o encontro distanciando-me de toda a vulgaridade da vida em terra. Os actuais cargueiros de contentores dizem apenas uma coisa: que não há vida fora da incessante prática das acções lucrativas. Num desses cargueiros, a contabilização lucrativa de cada minuto aí passado não é menor do que aquela que rege tudo o que se move, respira ou existe em terra seca. Neste contexto, o amor corre sérios perigos, já que deixou de ser sustentada a homologia entre lançar-se ao mar e a entrega amorosa. O desejo ou a saudade perderam realidade expressiva por não corresponderem a uma lógica de consumação, já que sempre exprimiram a falha do projecto amoroso, o verdadeiro segredo dos amantes. Como os marinheiros, os amantes aspiram à inutilidade perfeita.

«Mas oh é tão típico dos homens do mar nunca fazerem nada, limitarem-se a ir a terra com dinheiro nas algibeiras e vaguearem estupidamente de um lado para o outro e até com uma espécie de desinteressada mágoa, visitantes de outro mundo, uma prisão flutuante, de roupas civis de um aspecto muito desinteressante.»



sábado, julho 23, 2016

Quatro fragmentos sobre Artaud

Depois de duas sessões dedicadas a Artaud (Gato Vadio, 23 de Abril e 15 de Julho), onde tive a felicidade de ter como co-animador o Nuno Pinto, actor artaudiano incendiado desde a infância, corpo possesso ali ao meu lado, fiquei com alguns fragmentos nas mãos. Como fragmentos aparecem aqui, porque as duas sessões decorreram na forma do diálogo, da leitura e do improviso. Um dia, dar-lhes-ei outra forma, que certamente não será a das sessões (a Isabel esqueceu-se do registo fílmico).



 
Tenho o espírito tão pequeno como uma mão!
Artaud, o feiticeiro rapazola

O que é este desejo que corre em Artaud, tão universal e tão estranho? É um desejo horrível porque visitante e deambulante. Artaud é um ser de desejo, como todos nós, mas que recusa fixá-lo em certo veículo, que recusa estabilizar o seu desejo. Nem mesmo diante da morte o seu desejo se detém, mas antes entra por ela adentro, como os Tarahumaras sempre fizeram, esses índios do México com quem ele foi ter nos anos 30. O desejo por dentro da morte, mais do que desejo de morte, que é um género mais difundido de paixão pela morte, dessa paixão fascista que emerge sempre aqui e acolá, ou mesmo da paixão corrente pelas alegrias mortas.
Sim, Artaud é um antifascista que conhece tão bem a matéria imunda das paixões quanto esses fascistas. Mas em vez de praticar a retenção do desejo, faz a sua transmutação. Transforma o ódio e o amor reunindo-os, faz da literatura «coragem horrível». Coragem horrível! Não há melhor definição do seu estado de espírito: nada do que vê permanece simplesmente horrível – retenham bem esta ideia – porque o horror entra no circuito do rito, que é transformação e não purificação. É esse, aliás, o seu grande conflito com o cristianismo, uma religião que perdeu de vista o horror, deixando-o pregado à cruz, fixando-o. O horror deve viver para que haja vida.
Estes ritos que incendeiam Artaud, ele que procura as terras de rituais mortíferos como fonte de vida. Vai ao México, vai à Irlanda. Ao que parece todas essas viagens – que dão origem a entusiasmos e descobertas do próprio – são feitas ao encontro de lugares arruinados pelo mundo moderno, pelo dinheiro, pela migração. Quanto mais a sua época despreza estas culturas, mais Artaud acredita nelas. Nisso é diferente de Abby Warburg, que acredita, transpondo-as para outro plano. Esses índios são ruínas ambulantes, «drogaditos» que já só obtêm visões à custa de muito esfregarem a alma na porcaria. Mas, à custa de muito «esfreganço», erguem-se, algo sai dela, primeiro sob forma fecal, depois como misteriosa animação de seres patéticos. «Bruxaria fisiológica», chama-lhe Artaud. «Entre eles não há um gesto perdido, gesto que não tenha um sentido de filosofia directa. Os Tarahumaras chegam a filósofos exactamente como o menino cresce e se faz homem; são filósofos de nascença».
Que belo, dirão, que belo! «Filósofos de nascença!» Vemos logo meninos querubins, «très sages». Talvez Artaud visse algo assim também, sob o efeito do peyotl, mas estes índios também eram filósofos patéticos e filósofos porque patéticas ruínas. Será esse o devir do próprio Artaud: das ruínas do México índio para a ruína do próprio corpo. Nele não é uma perda, um encarquilhamento do ser, mas uma absorção mágica, uma transformação. Talvez isso explique algo que sempre me intrigou: uma certa aceitação dos encarceramentos psiquiátricos aquando do regresso à Europa. Talvez porque tudo já fervia dentro dele, porque a mixórdia se decompunha e compunha no interior de um corpo que já nem podia escrever. Aliás, será essa a razão porque, mal o seu regime é relaxado, Artaud recomeça a escrever, mais do que nunca, enchendo centenas de cadernos em escassos anos.
Artaud é um ser patético, ele próprio no-lo lembra: Artaud, le momo, misto de miúdo e palhaço. Patético como pathos, como paixão, mas engolida e incorporada. O mesmo é dizer que ele é um «espírito tão pequeno como uma mão», punho espiritual, tanto está aberto como bate.




 
Não há condições para ler Artaud


Quem leu Artaud perguntou-se como seria possível lê-lo. Ou seja: desesperou, lenta e seguramente. Lendo Artaud permanece presente a impossibilidade da sua leitura, de toda a leitura. Ora, haverá certamente uma diferença entre a impossibilidade geral da leitura e a impossibilidade de ler Artaud. Mas essa diferença vai-se tornando mais obscura à medida que aquilo que tomamos como leitura tem lugar a partir deste nome. Em que abismo desaparece a relação com o texto de Artaud? Na loucura? Na literatura? No nome?
Um dia, Artaud enviou os seus poemas ao senhor Jacques Rivière, que era director de uma revista importante. Essa importância era a da literatura, diante da qual esses poemas se manifestavam inaptos. Quando são recusados, Artaud escreve-lhe cartas que explicam essa inaptidão. Essa insistência epistolar não é fruto de uma leitura do literário, mas somente daquilo que ficou lá fora, fora do literário, de guarda, como uma fera que vai devorando as palavras que para ele se dirigem.



Artaud e Jacques Rivière
 
Rivière não era um idiota. Aliás, após um primeiro momento em que se escuda no seu papel de director literário, Rivière deixa-se «tocar» por Artaud. Aquele que se deixa tocar não pode ser um idiota, embora esta correspondência seja atravessada por várias formas de idiotia. Mas poderia ser de outra forma? O problema de Rivière é ele estar ainda tocado por algo que estava inscrito no seu papel de director humanista da NRF, não propriamente por aquilo que Artaud lhe escreve. Rivière explora aqui os limites do seu papel literário – recordemos que ele é o amigo de Proust, o editor de Valéry, de Saint-John Perse, de Aragon. Rivière ainda é jovem: nascido precisamente neste 15 de Julho, tem apenas mais dez anos do que Artaud. No espaço de um ano, chegará à finitude literária, verá o que é uma literatura que só pode falhar já que o início esteve sempre dela ausente. E aí calar-se-á.
Tocado e «arrependido» (carta de 25 de Março), Rivière deixa-se conduzir para a questão mortal: é possível a literatura? Lendo-o, parece ser ele a explicitar a questão: «Há toda uma literatura que é o produto do funcionamento imediato e, se posso assim dizer, animal do espírito» (25 de Março). Esse tipo de literatura ainda não tinha passado pela Revista (é a revista maiúscula da literatura francesa), sendo lógico que os poemas de Artaud sejam declarados impublicáveis. Ora Rivière não é um censor. Não é por algum suposto imoralismo ou pelo perigo das ideias que transportam, é antes porque esses poemas se dedicam a desfazer as ideias – qualquer ideia – que possam ainda transportar. São criaturas vivas e horrendas que esgravatam com as unhas a sua prole frágil. A consciência desse horror está bem presente em Artaud. Esses poemas são a representação viva do esfarelamento da literatura. Rivière, que é sensível, sabe que bem que, publicando Artaud, condenaria a sua revista ao esfarelamento. Perguntar-nos-emos, então, sobre o porquê da sua proposta de 24 de Maio, a «ideia» de publicar essa mesma correspondência na NRF.
Rivière só sobreviverá oito meses à sua correspondência com Artaud. Sobrevivera à sua participação na Grande Guerra e na Grande Literatura, mas não sobreviverá ao morto-vivo que lhe escreve, o coveiro da literatura.



O fato de Artaud

 Na segunda sessão sobre Artaud no Gato Vadio, faltou-me o tempo para falar da encenação de «The Cenci», a peça de Shelley que Artaud levou à cena em 1935 e que acabou, definitivamente, com a sua carreira de encenador. Restam poucas fotografias dessa encenação, mas sempre me fascinaram os cenários e, sobretudo, o guarda-roupa, com destaque para o fato envergado pelo próprio Artaud enquanto Conde Cenci. A peça, permeada pelos temas do incesto e do parricídio, era ideal para Artaud, que fez da cena em que a sua personagem é assassinada o vórtice onde toda a acção e toda a encenação colapsavam.


Descubro agora que esse fato magnífico - espécie de paramento renascentista do fogo alucinado de Artaud - é criação de Balthus, aliás, Balthasar Klossowski. Revelação: era precisa a mão de um artista assim para que o corpo de Artaud estivesse alguma vez à altura dos sons que emitia, todo ele um órgão exposto. Ficam aqui uma imagem de Artaud nos Cenci e outra de Balthus, visto ao espelho de Setsuko.





quinta-feira, fevereiro 11, 2016

ULMEIROS FRONDOSOS E DESARRUMADOS


A Ulmeiro, como é conhecida, está em risco de fechar. É sina habitual das livrarias em Portugal. A Ulmeiro não era a minha livraria preferida, mas estava no número dos templos livreiros a que eu rendia culto na minha adolescência, que decorreu não muito longe dali. Nos comentários de leitores que acompanham a reportagem online do Observador, alguém pergunta se «isto é uma livraria ou uma arrecadação?» A resposta, evidentemente, é que é uma livraria na sua variante de alfarrabista. Uma livraria tem, mais ou menos desarrumada, este aspecto, para quem não sabe. Às pessoas que dizem estas coisas higiénicas e pequeno-burguesas pergunto se já viram alguma fotografia da Shakespeare&co, em Paris, nos tempos heróicos de Sylvia Beach. Ou se já percorreram as cidades com tradição cultural tendo tido o trabalho de procurar livrarias a sério.
As livrarias têm vindo a ser substituídas por umas «boutiques», para usar outra palavra em desuso, que vendem livros. Coisas com poucos livros, muito espaço de circulação e abundante ignorância sobre o reino mágico do livro. Quem gosta de livros tem sempre demasiados livros. As livrarias que gostam de livros têm demasiados livros. Mas estas livrarias desarrumadas por vocação precisam de leitores inusitados, aventureiros do livro, que gostam de percorrer as estantes, desarrumar pilhas de livros, até que ficam com algo simultaneamente surpreendente e esperado nas mãos. A Ulmeiro era também um viveiro pujante, já que foi também, durante muito tempo, editora. Comprei um bom número dos seus livros: recordo em particular a minha primeira edição das Primaveras Românticas do Antero. Juvenília significativa e íntima.
O livro não está a desaparecer, mas está a perder as subculturas e as contraculturas que o tornam sedutor e «aurático». A Ulmeiro vem directamente de uma certa forma de contracultura. Não era, a princípio (pelo menos assim me parecia), uma daquelas a que sou mais sensível, que a imaginação levava-me mais para a City Lights (livraria e editora, como aqui), em São Francisco. Um belo dia, contudo, a Ulmeiro ofereceu-me um presente que nunca esquecerei: levou lá o Lawrence Ferlinghetti, fundador da City Lights, de quem a Ulmeiro tinha publicado uma pequena selecção de poemas. Acabei a trocar correspondência com ele pedindo novas e o contacto do Gary Snyder, que nunca obtive. Como vêem, a Ulmeiro, quase sem querer, fez muito pelos sonhos deste rapaz de Lisboa. Não compreendo a pobreza desta reportagem, que não procurou estas histórias gloriosas: o jornalismo, quando toca hoje o livro e o seu universo, parece, desculpem-me a expressão, «o boi diante do palácio». Será porque já cresceu com as livrarias homeopáticas?
No bairro onde se encontra, a Ulmeiro era e é uma raridade. Rapaz, quando não podia ou não queria deslocar-me às grandes livrarias do centro da cidade ou aos alfarrabistas do Bairro Alto, era lá que ia para a aventura do dia. A Ulmeiro tem de continuar? Tem, enquanto este casal tiver forças. Já não têm a mesma energia, mas têm o gosto, vê-se bem. E estão no seu bosque de ulmeiros. Seria bom que outros ulmeiros fossem plantados na cidade.





quinta-feira, janeiro 28, 2016

O seguinte texto foi publicado no número de Janeiro de 2016 da revista Contemporânea. Corresponde, com excepção de algumas modificações com vista à sua publicação, à apresentação que proferi nos «Maus Hábitos, no espaço da exposição «Uma janela para alguma outra coisa» de Hugo de Almeida Pinho.



 Conheci o Hugo recentemente, tendo, desse encontro, surgido um primeiro diálogo. Logo depois, colocado perante estes trabalhos, senti um vivo interesse pelo conjunto desta exposição. Quero colocar-me aqui, porque o trabalho que me impressionou particularmente foi este [levanta-se da cadeira, e aponta para a imagem com a tina de revelação a vermelho]. Curiosamente, sempre entendi as imagens como entidades que prometem a própria chegada. Daí que upcoming images constitua verdadeiramente um título pertinente: algo que anuncia a sua chegada, essa promessa que é o cerne de uma certa cultura da viagem no Ocidente. Essa cultura tem uma história que o Hugo pensou e pôs diante de nós. O turismo não era irrelevante quando queríamos atribuir sentido às nossas viagens. Tornou-se irrelevante. Não creio, contudo, que essa irrelevância seja o tema destes trabalhos. Vejo neles, pelo contrário, um plano da experiência que já passou pelo que é significativo na deslocação turística, que já acedeu à irrelevância, que já se decantou nela e já produziu, desse modo, um conjunto de imagens, ou seja, de chegadas incumpridas. A nossa cultura reuniu, de modo singular, a viagem e a imagem, formando assim uma espécie de impossibilidade compósita a que nos fomos habituando. O turismo é, talvez, a história da nossa viagem para a irrelevância civilizacional. E, quando falo de «imagem», faço-o no sentido de uma poética que se disseminou e que se tornou fixação dorida do sonho do viajante. Em última análise, o viajante que recusa a promessa vã da chegada imagética deve levar a frustração da viagem até ao fim. Deve, creio, viajar por dentro da própria imagem em que ele já se tornou. Eis a razão por que quero aqui ler-vos um excerto de uma carta que resume esse sentimento que tive quando encontrei este mupi do Hugo. Vou traduzir do francês ao mesmo tempo que leio, por isso peço desculpa pelas hesitações.
“Querida mamã. Recebi as duas meias e a vossa carta, recebi-as em circunstâncias muito tristes. Vejo aumentar a inflamação do meu joelho direito e a dor na articulação, sem encontrar nenhum remédio, nem nenhuma prescrição, no Harar estamos no meio dos negros e não há lá europeus, decidi portanto partir. Era preciso abandonar os negócios, o que não era fácil, pois eu tinha o meu dinheiro disperso por todo o lado, mas consegui, por fim, liquidar quase tudo e pude partir. Desde há uma vintena de dias que me permaneço deitado no Harar e na impossibilidade de fazer um único movimento, sofrendo dores atrozes, e não conseguindo dormir. Aluguei dezasseis negros, negros portadores, a cerca de quinze talares cada um do Harar a Zeïlah, fi-los fabricar uma padiola coberta de lona, e foi deitado nela que acabo de fazer, em doze dias, os trezentos quilómetros de deserto que separam os montes do Harar do porto de Zeïlah. Inútil dizer-vos os terríveis sofrimentos durante o caminho, não pude nunca fazer um único passo fora da liteira, o meu joelho inchava visivelmente e a dor aumentava continuamente.”[1]
Esta é uma carta de Arthur Rimbaud, escrita no dia 30 de Abril de 1891, em Áden, cidade portuária do Iémen, onde se encontra internado no Hospital europeu. Ela faz parte de um conjunto de mais de uma centena de cartas hoje conhecidas de Rimbaud. Lamentavelmente, não traduzidas, na sua maioria, em português, embora eu pense que elas fazem parte da obra rimbaudiana. É certo que nos dez anos que passará no norte de África, frequentemente entre Áden e Harar, na Abissínia, Rimbaud far-se-á comerciante e traficante. Em fundo, contudo, entendo-o como o Rimbaud que fecha a obra poética e parte numa viagem sem fim. Não se fecha uma obra poética impunemente: é uma perigosa afronta à morte, já que, habitualmente, é esta que a encerra. Toda a restante vida de Rimbaud será um confronto com a ruína, porque este é um homem que decidiu afastar-se radicalmente da primeira metade da sua vida. É neste sentido que Rimbaud reúne as duas vertentes do viajante ocidental: aquele que se insere na experiência colonial e aquele que se desloca no desgosto da experiência que viveu. Este desgosto – parece-me –, as imagens que o Hugo colocou no seu banho dão-no magnificamente. Essa promessa inatingível da chegada encontramo-la toda aqui. Todo o turismo é fruto do comércio deste desespero com as imagens interiores por ele fabricadas.
Foi assim que, ao fim de um dia de reflexão, pude perceber que o meu fascínio por esta tina cheia de postais remetia para uma experiência turística – vamos chamar-lhe turística – muito precisa daqueles ocidentais que viajam pelo mundo sem ser em razão de fins imediatamente comerciais. Lendo a distribuição geográfica dos postais aqui liquidamente visíveis, que vão desde o Magreb até ao Egipto e ao Iraque, toda essa linha do mundo islâmico ao fundo do Mediterrâneo e que se prolonga até às portas da Ásia, fui projectado para uma série de memórias literárias e culturais do que chamarei um turismo desesperado. Eu não confundo, recuso-me a confundir, aquilo a que hoje chamamos turismo, globalizado e produto de entretenimento, com o turismo que os ocidentais fizeram durante séculos. Essa história turística dos ocidentais, cujo arranque cultural vou situar na modernidade no século XVI, e que para mim começa literariamente com um magnífico poeta francês, Joachim Du Bellay, um dos primeiros turistas ocidentais que se dirige a Roma e escreve sobre essa experiência. Ora, Roma no século XVI é essencialmente um campo de ruinas, um local lamacento. Evidentemente a Igreja está presente, é o Estado papal, mas, para onde quer que o turista se volte, há um campo de ruínas visível e há um mistério na origem do próprio facto de se ser ocidental. E é isso que fascina Du Bellay, é essa ruina, in sito e in stato. Portanto, o turismo não é na cultura ocidental uma viagem de prazer: o turismo é uma viagem de dor, de regret, como diz Du Bellay, que os prazeres ocasionais da viagem vão suavizando. Com o Risorgimento, a Península transalpina deixará de ser um cenário adequado a estes exercícios. É, então, naturalmente que os olhares destes turistas se voltarão para o além mediterrâneo, territórios recentemente aniquilados pela decadência e pelo colonialismo.
Esta viagem de confronto do eu, do confronto com a própria cisão do eu, que já só se reconhece enraizado em ruínas prestigiosas, vai adaptar-se maravilhosamente a estes territórios pouco povoados e desérticos. O turista viaja com a própria insuficiência do ser ocidental, leva-a consigo e projecta-a em locais onde a desagregação histórica ou natural atingiu um grau tal que a insuficiência pode aí vicejar. O momento mais belo e terrível dessa história do turismo ocidental será, para mim, a transição do século XIX para o século XX. Rimbaud, evidentemente, persiste em dar-nos um sinal inaugural. Mas é também nesses territórios que podemos situar uma escritora suíça magnífica, que começou a ser traduzida em Portugal há poucos anos, Annemarie Schwarzenbach, que exprime perfeitamente em textos como Morte na Pérsia[2], este sentimento de ir ao encontro da morte, ir ao encontro de uma espécie de revelação da luta com o eu. Não é ir ao encontro do próprio eu, não é ir ao encontro da representação de si, é ir ao encontro precisamente da fragmentação e dessa insuficiência que é, de alguma forma, a auto-consciência do autor, logo do artista. Isso, que em Rimbaud é muito claro, torna-se em Schwarzenbach quase insuportável. Oiçamos uma passagem da sua voz:
«É ténue a fronteira que separa o desumano do sobre-humano, e a grandeza desesperada da Ásia é sobre-humana: nem sequer hostil, apenas demasiado grande. Na Ásia, que importância tem a morte de alguém? E, no entanto, não conhecemos grito mais desesperado do que este: “Uma pessoa morre!» Não, nenhum falseamento poderá libertar-me do meu fardo e aliviar o leitor»[3]
O quase meio século que separa um e outra não tem aqui relevância particular: a grande diferença reside antes no facto de Arthur já ter deixado para trás a aventura estética, enquanto Annemarie ainda a transporta para o deserto, onde será duplamente calcinada no corpo e no espírito. Já Rimbaud é todo carne no momento em que o encontramos esgotado pelo seu turismo. O espírito reentrara há muitos anos nesse corpo refractário e seco, próprio para as grandes travessias, mas sem recursos interiores, que deixara no papel anos antes. Recordo, contudo, que Rimbaud possui um genuíno olhar de turista, visível nas fotografias que foi tirando no seu périplo. Estas parecem-nos comoventes e belas, sabendo nós de quem são. Contudo, o seu olhar, a sua promessa incumprida de chegada, está muito próximo daquele que encontramos nestes postais que o Hugo colocou no seu banho de revelação.
Há uma segunda parte da obra de Rimbaud que, para mim, não está escrita a não ser em breves clarões nas cartas, mas que é essa vida «dromedária», enigma do viajante que abandona toda a idealização do que encontrará no caminho e que é, contudo, obra-vida – como toma por título esta edição da obra de Rimbaud, que, por ser capaz de assim dar conta da dupla viagem deste, me parece superior a todas as outras. Terá Rimbaud abandonado a escrita para poder viajar? É pouco provável, já que a sua poesia era já o anúncio dessa viagem e da sua necessidade de não-inscrição. Evidentemente, falta-nos sempre o acesso à vida de Rimbaud, mas essa vida está de alguma forma como indício do fracasso da condição humana. O ser humano é um animal falhado. Eu diria que o turismo é a forma mais explícita de como essa questão é hoje exponencialmente revelada na nossa condição. Porque há uma outra história do turismo, ou uma pós-história deste: aquela que nós vemos hoje aqui no Porto, o turismo que não é o turismo do confronto, mas que é uma espécie de ilusão duma totalização do mundo, de uma harmonia e previsibilidade do mundo da viagem. Nestas condições, a ilusão da viagem é um terrível logro: alimentada como é pela promessa das imagens, a viagem turística é hoje tudo menos o que é a viagem. É assim que essa dimensão do turismo hoje foi completamente ocultada, o que provoca uma grave ilusão sobre a natureza da viagem. Não é por acaso que os ocidentais, os europeus em particular – desprovidos de uma cultura da viagem, de que os últimos testemunhos são aqueles que aqui evoquei – estão em pânico com as migrações, reconhecendo nelas algo de hediondo, mas sem referências culturais que lhes permitam compreendê-las. Os movimentos de migração permaneciam ainda como memória profunda desses turistas desesperados. E o seu desespero decorre da própria impossibilidade de se transformarem em migrantes. O movimento de migração é um movimento de hominização desde o Paleolítico. Portanto, o pânico face à migração é, sobretudo, o pânico perante a possibilidade de termos imagens dessa hominização. Nós, pela primeira vez, temos imagens dos movimentos migratórios, imagens praticamente em tempo real. Isso produz um imenso pânico, porque a migração foi entendida por ocidentais como Du Bellay ou Rimbaud como algo inacessível, marca do falhanço cultural da sua condição, já que ela é o puro movimento do que faz o Homem. E, portanto, essa condição humana em movimento parece-nos agora insuportável. Homens e mulheres como Rimbaud, como Annemarie Schwarzenbach, vão à procura dessa dimensão essencial do movimento, e por isso são turistas. Turistas magníficos, mas de qualquer forma turistas.
Tentei explicar algo do meu fascínio perante este teu belíssimo trabalho. Na verdade, a imagem da viagem permanece imersa no seu banho de revelação. Ela é essa promessa por cumprir que a viagem não pode, por si só, concretizar. O turismo é este banho em que o visível continuará mergulhado.







[1] «Ma chère Maman, Jai bien reçu vos deux bas et votre lettre, et je les ai reçus dans de tristes circonstances. Voyant toujours augmenter lenflure de mon genou droit et la douleur dans larticulation, sans trouver aucun remède ni aucun avis, puisquau Harar nous sommes au milieu des nègres et quil ny a point là dEuropéens, je me décidai à descendre. Il fallait abandonner les affaires : ce qui n’était pas très facile, car javais de largent dispersé de tous les côtés ; mais enfin je réussis à liquider à peu près totalement. Depuis déjà une vingtaine de jours, j’étais couché au Harar et dans limpossibilité de faire un seul mouvement, souffrant des douleurs atroces et ne dormant jamais. Je louai seize nègres porteurs, à raison de 15 thalaris lun, du Harar à Zeilah ; je fis fabriquer une civière recouverte dune toile, et cest là-dessus que je viens de faire, en douze jours, les 300 kilomètres de désert qui séparent les monts du Harar du port de Zeilah. Inutile de vous dire quelles horribles souffrances jai subies en route. Je nai jamais pu faire un pas hors de ma civière ; mon genou gonflait à vue d’œil, et la douleur augmentait continuellement. []». Arthur Rimbaud, Œuvre Vie, Édition du centenaire. Paris : Éditions Arléa, 1991, p. 811.
[2] Tod in Persien. Tradução portuguesa: Morte na Pérsia. Lisboa: Tinta-da-China, 2008.
[3] Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia, p. 15.