terça-feira, novembro 25, 2014

Miseráveis de mundo

Está no prelo o volume que reúne as comunicações apresentadas no Colóquio Internacional Paul Celan: From an Ethics of Silence to a Poetics of the Encounter. Este colóquio constituiu uma rara oportunidade para a partilha de perspectivas sobre uma poesia tão profundamente rasgada pelo nosso tempo. Neste volume encontra-se um ensaio que escrevi sobre o encontro entre Celan e Heidegger, um dos mais elevados e difíceis diálogos entre poesia e filosofia, no qual estas duas visitações do que importa já não correspondem às concepções vulgares que delas temos. Intitula-se: «Miseráveis de mundo. Impossibilia a dois». Reproduzo aqui um excerto deste.



A noite do século XX é aquela que ainda vivemos em certos signos do tempo. Embora já fora do século XX, esta vivência pertence-nos e só nos abandonaria se pudéssemos abarcar-lhe o movimento. A noite do século XX pertence à História sem nela poder ser determinada. É uma noite historial já que o seu tempo só é o nosso se nos desligarmos do seu correr, embora toda a pergunta por esse desligamento esbarre numa projecção, numa pró-tensão sem origem determinável, que é já a da sua finição. A sua de-finição é um movimento de esvaziamento nocional, porquanto o sentido do acontecer histórico não pode nunca sair da própria categoria que o gerou e alimentou. Daí que o «século XX» seja uma figura metafísica da História, supremamente efectiva, a mais terrível de todas[1]; os sonhos do fechamento do sentido são nela uma experiência histórica e eideticamente objectivada. A progressiva compreensão disto situa o «século XX» de Heidegger. Da tematização das «antecipações constituintes» possibilitadoras de um Dasein histórico verdadeiramente fundado[2] à compreensão de como a linguagem foi aqui, e desde há muito, entretecida na constituição histórica de uma disposição (de «dispositivo») dos objectos, tudo isso conduz Heidegger a um programa filosófico que visa arrancar a linguagem a esse dispositivo, que Heidegger viu de bem perto, o que permitiria voltar a escutar algo novo nela – o «silêncio», como dirá Celan – que não é mais do que a latência na linguagem ou, noutro registo, a vida na morte.
A historialidade abre certos espaços, determina certos actos de espaçamento, a que poderíamos dar o nome de poéticos ou próprios do pensamento, que fazem de toda a consciência do tempo uma consciência simultaneamente eclodida e encerrada. Na nossa perspectiva, como já dissemos, a relação entre Celan e Heidegger é mais devedora dessa historialidade e do seu mistério próprio do que da própria vida na história destes interlocutores. As suas vidas são, aliás, no plano do contacto com os acontecimentos do século, desastrosas em modos e com responsabilidades diversas. Mas pergunta-se: como não entender que da Bucovina à Baviera, esses anos trinta ligaram esses destinos em torno da palavra «destruição» (a Destruktion), desde aí, para ambos, a palavra do século? Ora, se a destruição é aquilo que fixa os destinos, a violência, precisamente o que arranca os homens e as mulheres ao seu destino, é aquilo que pode continuar a gerar a palavra.
A destruição é um problema inscrito no coração do humanismo e não um fenómeno que se dá apenas quando este se encontra debilitado. O humanismo tenta inscrever o humano, enquanto categoria excepcional, na própria vida. Afirma, portanto, a compatibilidade entre um fenómeno irrepetível e excepcional – o humano – e um fenómeno generalizado e plástico – a vida. Convém dizer que tanto Heidegger como Celan rejeitam claramente o contexto humanista que conduziu a cultura ocidental até ao presente. Essa rejeição tem fontes diferentes, como todos sabemos, mas o que importa sublinhar é precisamente o facto de este encontro constituir uma convergência de dois olhares profundamente cépticos relativamente a uma tradição baseada na sustentação da polis humana em certas aquisições tomadas como historicamente determinadas pela excepcionalidade ontológica do ser humano. O humanismo não é, para estes, um problema do antropocentrismo clássico, mas antes algo que deriva do produtivismo que inscreve o homem a partir da sua imagem esvaziada, a sua exo-inscrição no mundo. A pergunta a que o humanismo deixou de poder responder no presente é a pergunta sobre esse esvaziamento. Diante das respostas que os totalitarismos do século vinte lhe deram, o silêncio do humanismo poderia parecer-nos sensato. A fim de inscrever o humano, o humanismo foi historicamente obrigado a produzir constantemente a figura do homem. Durante muito tempo, predominou a ilusão de que esta figura poderia ser uma figura essencialmente espiritual, inscrita no interior da estátua humana. Aí, o humanismo seria sempre uma estética que transpareceria na presença do homem. Foi não tomar em conta o problema da desmesura: inscrever o homem é inscrever a desmesura da sua doença.


[1]  Figura diante da qual, como perguntava Heraclito, nos interrogamos como é possível escondermo-nos daquilo que não tem ocaso. Cf Heidegger, «Aletheia».
[2] Cf. a primeira versão da conferência sobre a obra de arte (1931-1932). «Vom Ursprung des Kunstwerkes. Erste Ausarbeitung». In Heidegger Studien, vol. 5. Berlim: Duncler & Humblot, 1989.


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