quinta-feira, abril 16, 2015

A arte com carnes e o cozinhado do humano

Em Malmö, no Malmö Konsthall, dois mendigos romenos foram exibidos numa galeria de arte. Suponho que sejam dois seres humanos; suponho também que sejam um homem e uma mulher (Livro do Genesis «oblige») cujas biografias inscrevem, efectivamente, a mendicidade e a condição étnica «rom» ou cigana; suponho ainda que para esta mulher e este homem a exposição a que são submetidos na galeria de arte não seja substancialmente diferente daquela que viveram nas ruas das cidades da Europa. Para serem exibidos (aqui sem «»s) são necessárias as seguintes condições: estarem vivos (mas se algum viesse a morrer subitamente, pôr-se-ia a questão do interesse artístico da morte súbita); subsistirem, antes e depois da exposição, através da actividade que replicam na galeria (há sempre uma mimese nesta «verdade», aqui com contornos paródicos involuntários); não serem demasiado inconvenientes para o público nem para os espaços higiénicos dedicados à arte (aquele branco e aquela zona de circulação devem permanecer virginais).

O subtítulo do artigo do «Babelia», um suplemento cultural e literário que ainda sobrevive com dignidade na imprensa europeia, é interessante: «Tudo, do mais sagrado ao mais profano, se converteu em carne de museu». É interessante mas, provavelmente, equívoco e falho. Porque, na minha perpectiva, a condição da arte contemporânea é um assunto essencialmente arrumado. À arte falta a sensibilidade para o processo da sua própria morte. Ou seja, para a sua corrupção. Embora a morte da arte ande por aqui há dois séculos, e muitos artistas o tenham compreendido, há uma obstinação de cadáver que parece percorrer muitas das instituições artísticas e dos seus agentes.
Já escrevi, noutro lugar, sobre esse artista sueco, simultaneamente exemplar e menoríssimo, que dá pelo nome de Carl Hausswolff. Um oportunista, evidentemente, que teve a brilhante ideia de incorporar cinzas humanas provenientes dos fornos crematórios do campo de Majdanek nas suas pinturas. Mas o oportunismo de Hausswolff é o oportunismo do sistema artístico, incluindo os chamados «especialistas», sejam críticos ou artistas. A propósito da proibição da exibição de alguns quadros seus, estes tiveram a oportunidade de repetir as suas considerações sobre a posição exemplar (de quê e o que é o exemplar em arte?) de Duchamp e a admissão de «objectos» heteróclitos na galeria.

Na verdade, a «denúncia» política e ética efectuada pela arte confunde-se cada vez mais com a leviandade semiológica das populações do mundo globalizado. É cada vez mais um ritual de morte em nome da vida (daí o que há de questionável nesta noção da «carne de museu», corrupção expedita do conceito de carne em Michel Henry). Confunde-se com o fabrico de significação e com a práxis publicitários que tomaram conta das artes, em particular das artes plásticas.
Se a condição da arte contemporânea me parece um assunto arrumado, entregue ao «business as usual», a condição humana não anda longe de vir a estar também arrumada. Talvez no mesmo espaço de armazenamento e reciclagem: uma qualquer galeria de arte próxima de si. Será esse o verdadeiro sentido da «morte da arte» tematizada por Hegel?

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