sexta-feira, julho 04, 2014

A comunidade poética das culturas








O centenário de Octavio Paz passou em silêncio entre nós. Trata-se de um silêncio que diminui a poesia porque o nome de Paz é sinónimo de um expansionismo poético insuportável para todos os poderes que submetem a palavra. E o escândalo que aqui exprimo não é um tributo ao Nobel que lhe atribuíram. Neste caso, o Nobel da literatura circunscreve este nome, sinónimo das facetas múltiplas da paixão, e não apenas das literárias, nome de cantor poético do que de vivo e morto forma o universo. Este mexicano que se entregou à paixão das culturas ameríndias, ao culto das poéticas orientais, aos enigmas da flora verbal e da carne erótica é um poeta que devemos reivindicar para a esfera da nossa literatura, porque, a partir desta, o convidam um Padre António Vieira ou um Garcia da Orta, um Pessanha ou um Wenceslau, Pessoa, decerto, mas também António Barahona ou tantos outros que conheceram essa estranha doença quimérica que atinge alguns latinos dados ao balanceamento frágil entre os céus plúmbeos das américas e os os vapores samsáricos do oriente.




Paz foi um poeta de língua castelhana, evidentemente. E um dos maiores do último século. Um poeta das américas, nascido à sombra das pirâmides astecas, que respirou o ar fresco e rescendente das igrejas da Contra-Reforma e, diante delas, viu passar a folia da morte. Um homem assim teria de ser um habitante da poesia que, escutado a partir da cultura portuguesa, podemos reconhecer imediatamente. Foi precisamente essa a decisão de Paz: habitar o mundo como quem vive a poesia nas suas múltiplas latitudes. Melhor: um habitante da poesia que assim desflora o mundo e lhe saboreia os múltiplos gomos. Porque a terra da língua, quando a abrimos com os dedos, verte sucos e aromas variados que se misturam. Ora, o acto poético é, nele, uma operação de tradução. E, por seu lado, a tradução só pode formar-se como poema. Daí que Octavio Paz seja o poeta que faz amor com as culturas, tal como Ezra Pound fora, antes, aquele que as punha a cantar em concílio: o autor dos Cantos já mostrara que a tradução é uma acção indistinguível da criação poética, mas demonstrava-o, no seu caso, tomado por nostalgias e violências muitas diversas.


Paz viveu nas Américas, na Europa e na Ásia. Trata-se de um dado essencial para reconstruirmos a sua crença trinitária na poesia. Chegado à Europa, nos anos trinta, a amizade com André Breton era inevitável: esses dois homens tinham descoberto, ao mesmo tempo, que a alma do mundo era a sua alma primitiva e que, no centro de ambas, estava o amor, os seus ardores, a sua festa erótica e roída pelos vermes da terra. No seu El Arco y la lira, diz: «O amor é um estado de reunião e participação, aberto aos homens: no acto amoroso a consciência é como a onda que, vencido o obstáculo e antes de se despenhar, ergue-se numa plenitude em que tudo – forma e movimento, impulso para o alto e força da gravidade – alcança um equilíbrio sem apoio, sustentado em si mesmo» (Obras Completas 1, Fondo de Cultura Económica, p.18). Esse estado de equilíbrio precário deve lembrar-nos as poéticas portuguesas e o seu «centro móvel», «uma maneira de assegurarmos a continuidade do nosso passado ao transformá-lo em diálogo com outras civilizações. Continuidade e diálogo ilusórios: tradução: transmutação: solipsismo» (El Signo y el garabato, Seix Barral, p. 156). 


Ele próprio conta como, por um acaso que nunca tinha antecipado, enquanto exercia um modesto cargo diplomático em Paris, que lhe permitia ser escritor dentro daquele conforto de que usufruem todos os que se entregam às vilegiaturas míticas da cultura moderna, foi inesperadamente transferido para a Índia. Este encontro deu origem a um dos seus mais belos livros, El Mono gramático, evocação do macaco sagrado do Ramayana: «Hanuman: mono/grama da linguagem, do seu dinamismo e da sua incessante produção de invenções fonéticas e semânticas. Ideograma do poeta, senhor/servidor da metamorfose universal: macaco imitador, artista das repetições, ele é o animal aristotélico que copia o natural, mas é também a semente semântica, a semente-bomba enterrada no subsolo verbal, que nunca se converterá em planta que aguarda o semeador, mas numa outra, sempre numa outra. Os frutos sexuais e as flores carnívoras da alteridade brotam do único caule da identidade» (Le Singe grammairien, Skira, p. 130).

Esta rotação de signos permite a rotação das culturas. Em El Laberinto de la Soledad, talvez a sua obra mais conhecida, Paz opôs-se energicamente a um conjunto de intelectuais mexicanos que procuravam definir a sua cultura nacional a partir de um ponto de vista ontológico – o «ser mexicano». Escreveu ele: «A mim intrigava-me (intriga-me), não tanto o ‘carácter nacional’, mas sim o que oculta esse carácter: aquilo que está por detrás da máscara. Nesta perspectiva, o carácter dos mexicanos não cumpre uma função distinta daquele de outros povos e sociedades: por um lado, é um escudo, um muro; por outro, um feixe de signos, um hieróglifo» (El Laberinto de la soledad, Cátedra, p. 364). Advertência àqueles que procuram o carácter português como se nele não houvesse esse jogo de máscaras.


Estivesse no México, na Europa ou no Rajastão, Octavio Paz associou sempre a experiência poética à vivência de identificação mais íntima com o que chamamos o «real». Pela poesia, «o universo deixa de ser um vasto armazém de coisas heterogéneas. […] A poesia põe o homem fora de si e, simultaneamente, fá-lo regressar ao seu ser original: devolve-o a si. O homem é a sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a ser – é. A poesia é a entrada no ser» (ibidem, p. 51). O nosso José Augusto Seabra também foi embaixador na Índia e escreveu um Caminho íntimo para a Índia. Se nem tudo é semelhante neles, é-o certamente a comum leitura poética da viagem no mundo. O labirinto dos portugueses, que é talvez o da saudade, sendo ainda o mesmo, tem certas violências em surdina que lhe são próprias. Ditas por um Pessoa que ambos souberam escutar.

Jorge Leandro Rosa
publicado em As Artes entre as Letras, Porto, nº 121. 30 de Abril de 2014


3 comentários:

Pedro AH Paixao disse...

Bravo, Jorge, amigo caro, que nas margens destes mundos sempre estás na incansável tarefa de recordar somente o que merece ser transmitido.

Fernando Couto e Santos disse...

Gostei do seu texto- que acabei de ler- sobre Octavio Paz. Também no meu blogue o lembrei no ano passado a propósito do centenário que passou quase despercebido, tanto em Portugal como em França, onde ele viveu nos anos 50 e em que esteve ligado aos surrealistas.Até mesmo em Espanha, o destaque não foi o que se esperava,pois vários livros estão esgotados e não foram reeditados. É triste.

Fernando Couto e Santos disse...

Para ser mais preciso, Paz viveu em Paris creio que entre 1945 e 1951 e depois entre 1959 e 1962, se não estou em erro.