quinta-feira, fevereiro 11, 2016

ULMEIROS FRONDOSOS E DESARRUMADOS


A Ulmeiro, como é conhecida, está em risco de fechar. É sina habitual das livrarias em Portugal. A Ulmeiro não era a minha livraria preferida, mas estava no número dos templos livreiros a que eu rendia culto na minha adolescência, que decorreu não muito longe dali. Nos comentários de leitores que acompanham a reportagem online do Observador, alguém pergunta se «isto é uma livraria ou uma arrecadação?» A resposta, evidentemente, é que é uma livraria na sua variante de alfarrabista. Uma livraria tem, mais ou menos desarrumada, este aspecto, para quem não sabe. Às pessoas que dizem estas coisas higiénicas e pequeno-burguesas pergunto se já viram alguma fotografia da Shakespeare&co, em Paris, nos tempos heróicos de Sylvia Beach. Ou se já percorreram as cidades com tradição cultural tendo tido o trabalho de procurar livrarias a sério.
As livrarias têm vindo a ser substituídas por umas «boutiques», para usar outra palavra em desuso, que vendem livros. Coisas com poucos livros, muito espaço de circulação e abundante ignorância sobre o reino mágico do livro. Quem gosta de livros tem sempre demasiados livros. As livrarias que gostam de livros têm demasiados livros. Mas estas livrarias desarrumadas por vocação precisam de leitores inusitados, aventureiros do livro, que gostam de percorrer as estantes, desarrumar pilhas de livros, até que ficam com algo simultaneamente surpreendente e esperado nas mãos. A Ulmeiro era também um viveiro pujante, já que foi também, durante muito tempo, editora. Comprei um bom número dos seus livros: recordo em particular a minha primeira edição das Primaveras Românticas do Antero. Juvenília significativa e íntima.
O livro não está a desaparecer, mas está a perder as subculturas e as contraculturas que o tornam sedutor e «aurático». A Ulmeiro vem directamente de uma certa forma de contracultura. Não era, a princípio (pelo menos assim me parecia), uma daquelas a que sou mais sensível, que a imaginação levava-me mais para a City Lights (livraria e editora, como aqui), em São Francisco. Um belo dia, contudo, a Ulmeiro ofereceu-me um presente que nunca esquecerei: levou lá o Lawrence Ferlinghetti, fundador da City Lights, de quem a Ulmeiro tinha publicado uma pequena selecção de poemas. Acabei a trocar correspondência com ele pedindo novas e o contacto do Gary Snyder, que nunca obtive. Como vêem, a Ulmeiro, quase sem querer, fez muito pelos sonhos deste rapaz de Lisboa. Não compreendo a pobreza desta reportagem, que não procurou estas histórias gloriosas: o jornalismo, quando toca hoje o livro e o seu universo, parece, desculpem-me a expressão, «o boi diante do palácio». Será porque já cresceu com as livrarias homeopáticas?
No bairro onde se encontra, a Ulmeiro era e é uma raridade. Rapaz, quando não podia ou não queria deslocar-me às grandes livrarias do centro da cidade ou aos alfarrabistas do Bairro Alto, era lá que ia para a aventura do dia. A Ulmeiro tem de continuar? Tem, enquanto este casal tiver forças. Já não têm a mesma energia, mas têm o gosto, vê-se bem. E estão no seu bosque de ulmeiros. Seria bom que outros ulmeiros fossem plantados na cidade.





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