sábado, julho 23, 2016

Quatro fragmentos sobre Artaud

Depois de duas sessões dedicadas a Artaud (Gato Vadio, 23 de Abril e 15 de Julho), onde tive a felicidade de ter como co-animador o Nuno Pinto, actor artaudiano incendiado desde a infância, corpo possesso ali ao meu lado, fiquei com alguns fragmentos nas mãos. Como fragmentos aparecem aqui, porque as duas sessões decorreram na forma do diálogo, da leitura e do improviso. Um dia, dar-lhes-ei outra forma, que certamente não será a das sessões (a Isabel esqueceu-se do registo fílmico).



 
Tenho o espírito tão pequeno como uma mão!
Artaud, o feiticeiro rapazola

O que é este desejo que corre em Artaud, tão universal e tão estranho? É um desejo horrível porque visitante e deambulante. Artaud é um ser de desejo, como todos nós, mas que recusa fixá-lo em certo veículo, que recusa estabilizar o seu desejo. Nem mesmo diante da morte o seu desejo se detém, mas antes entra por ela adentro, como os Tarahumaras sempre fizeram, esses índios do México com quem ele foi ter nos anos 30. O desejo por dentro da morte, mais do que desejo de morte, que é um género mais difundido de paixão pela morte, dessa paixão fascista que emerge sempre aqui e acolá, ou mesmo da paixão corrente pelas alegrias mortas.
Sim, Artaud é um antifascista que conhece tão bem a matéria imunda das paixões quanto esses fascistas. Mas em vez de praticar a retenção do desejo, faz a sua transmutação. Transforma o ódio e o amor reunindo-os, faz da literatura «coragem horrível». Coragem horrível! Não há melhor definição do seu estado de espírito: nada do que vê permanece simplesmente horrível – retenham bem esta ideia – porque o horror entra no circuito do rito, que é transformação e não purificação. É esse, aliás, o seu grande conflito com o cristianismo, uma religião que perdeu de vista o horror, deixando-o pregado à cruz, fixando-o. O horror deve viver para que haja vida.
Estes ritos que incendeiam Artaud, ele que procura as terras de rituais mortíferos como fonte de vida. Vai ao México, vai à Irlanda. Ao que parece todas essas viagens – que dão origem a entusiasmos e descobertas do próprio – são feitas ao encontro de lugares arruinados pelo mundo moderno, pelo dinheiro, pela migração. Quanto mais a sua época despreza estas culturas, mais Artaud acredita nelas. Nisso é diferente de Abby Warburg, que acredita, transpondo-as para outro plano. Esses índios são ruínas ambulantes, «drogaditos» que já só obtêm visões à custa de muito esfregarem a alma na porcaria. Mas, à custa de muito «esfreganço», erguem-se, algo sai dela, primeiro sob forma fecal, depois como misteriosa animação de seres patéticos. «Bruxaria fisiológica», chama-lhe Artaud. «Entre eles não há um gesto perdido, gesto que não tenha um sentido de filosofia directa. Os Tarahumaras chegam a filósofos exactamente como o menino cresce e se faz homem; são filósofos de nascença».
Que belo, dirão, que belo! «Filósofos de nascença!» Vemos logo meninos querubins, «très sages». Talvez Artaud visse algo assim também, sob o efeito do peyotl, mas estes índios também eram filósofos patéticos e filósofos porque patéticas ruínas. Será esse o devir do próprio Artaud: das ruínas do México índio para a ruína do próprio corpo. Nele não é uma perda, um encarquilhamento do ser, mas uma absorção mágica, uma transformação. Talvez isso explique algo que sempre me intrigou: uma certa aceitação dos encarceramentos psiquiátricos aquando do regresso à Europa. Talvez porque tudo já fervia dentro dele, porque a mixórdia se decompunha e compunha no interior de um corpo que já nem podia escrever. Aliás, será essa a razão porque, mal o seu regime é relaxado, Artaud recomeça a escrever, mais do que nunca, enchendo centenas de cadernos em escassos anos.
Artaud é um ser patético, ele próprio no-lo lembra: Artaud, le momo, misto de miúdo e palhaço. Patético como pathos, como paixão, mas engolida e incorporada. O mesmo é dizer que ele é um «espírito tão pequeno como uma mão», punho espiritual, tanto está aberto como bate.




 
Não há condições para ler Artaud


Quem leu Artaud perguntou-se como seria possível lê-lo. Ou seja: desesperou, lenta e seguramente. Lendo Artaud permanece presente a impossibilidade da sua leitura, de toda a leitura. Ora, haverá certamente uma diferença entre a impossibilidade geral da leitura e a impossibilidade de ler Artaud. Mas essa diferença vai-se tornando mais obscura à medida que aquilo que tomamos como leitura tem lugar a partir deste nome. Em que abismo desaparece a relação com o texto de Artaud? Na loucura? Na literatura? No nome?
Um dia, Artaud enviou os seus poemas ao senhor Jacques Rivière, que era director de uma revista importante. Essa importância era a da literatura, diante da qual esses poemas se manifestavam inaptos. Quando são recusados, Artaud escreve-lhe cartas que explicam essa inaptidão. Essa insistência epistolar não é fruto de uma leitura do literário, mas somente daquilo que ficou lá fora, fora do literário, de guarda, como uma fera que vai devorando as palavras que para ele se dirigem.



Artaud e Jacques Rivière
 
Rivière não era um idiota. Aliás, após um primeiro momento em que se escuda no seu papel de director literário, Rivière deixa-se «tocar» por Artaud. Aquele que se deixa tocar não pode ser um idiota, embora esta correspondência seja atravessada por várias formas de idiotia. Mas poderia ser de outra forma? O problema de Rivière é ele estar ainda tocado por algo que estava inscrito no seu papel de director humanista da NRF, não propriamente por aquilo que Artaud lhe escreve. Rivière explora aqui os limites do seu papel literário – recordemos que ele é o amigo de Proust, o editor de Valéry, de Saint-John Perse, de Aragon. Rivière ainda é jovem: nascido precisamente neste 15 de Julho, tem apenas mais dez anos do que Artaud. No espaço de um ano, chegará à finitude literária, verá o que é uma literatura que só pode falhar já que o início esteve sempre dela ausente. E aí calar-se-á.
Tocado e «arrependido» (carta de 25 de Março), Rivière deixa-se conduzir para a questão mortal: é possível a literatura? Lendo-o, parece ser ele a explicitar a questão: «Há toda uma literatura que é o produto do funcionamento imediato e, se posso assim dizer, animal do espírito» (25 de Março). Esse tipo de literatura ainda não tinha passado pela Revista (é a revista maiúscula da literatura francesa), sendo lógico que os poemas de Artaud sejam declarados impublicáveis. Ora Rivière não é um censor. Não é por algum suposto imoralismo ou pelo perigo das ideias que transportam, é antes porque esses poemas se dedicam a desfazer as ideias – qualquer ideia – que possam ainda transportar. São criaturas vivas e horrendas que esgravatam com as unhas a sua prole frágil. A consciência desse horror está bem presente em Artaud. Esses poemas são a representação viva do esfarelamento da literatura. Rivière, que é sensível, sabe que bem que, publicando Artaud, condenaria a sua revista ao esfarelamento. Perguntar-nos-emos, então, sobre o porquê da sua proposta de 24 de Maio, a «ideia» de publicar essa mesma correspondência na NRF.
Rivière só sobreviverá oito meses à sua correspondência com Artaud. Sobrevivera à sua participação na Grande Guerra e na Grande Literatura, mas não sobreviverá ao morto-vivo que lhe escreve, o coveiro da literatura.



O fato de Artaud

 Na segunda sessão sobre Artaud no Gato Vadio, faltou-me o tempo para falar da encenação de «The Cenci», a peça de Shelley que Artaud levou à cena em 1935 e que acabou, definitivamente, com a sua carreira de encenador. Restam poucas fotografias dessa encenação, mas sempre me fascinaram os cenários e, sobretudo, o guarda-roupa, com destaque para o fato envergado pelo próprio Artaud enquanto Conde Cenci. A peça, permeada pelos temas do incesto e do parricídio, era ideal para Artaud, que fez da cena em que a sua personagem é assassinada o vórtice onde toda a acção e toda a encenação colapsavam.


Descubro agora que esse fato magnífico - espécie de paramento renascentista do fogo alucinado de Artaud - é criação de Balthus, aliás, Balthasar Klossowski. Revelação: era precisa a mão de um artista assim para que o corpo de Artaud estivesse alguma vez à altura dos sons que emitia, todo ele um órgão exposto. Ficam aqui uma imagem de Artaud nos Cenci e outra de Balthus, visto ao espelho de Setsuko.





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